Contextualizando

Versão de um especialista: “Comparações e absurdos nos casos Daniel Alves, na Espanha, e Robinho, aqui.”

Em 23 de Março de 2024 às 18:21

Dois casos criminais bastante semelhantes envolvem a prática de estupros praticados por dois personagens famosos no futebol mundial, ambos condenados à pena de prisão:

Daniel Alves e Robinho.

Restam, para a opinião pública, algumas incertezas quanto à tramitação dos respectivos processos.

Wálter Maierovitch, magistrado aposentado como desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, dá sua opinião, em artigo no portal UOL:

“O cartunista e chargista marselhês Honoré Daumier, morto em 1879, imortalizou, nos desenhos reunidos na obra ‘Les Gens de Justice’, a Justiça francesa da época do absolutismo dinástico. Uma justiça de castas, insensível e corrupta.

A partir dessa obra sobre a justiça régia francesa, na qual os traços falam por si só, virou referência a realização de comparações entre as justiças nacionais no Ocidente. Entre os seus juízes e as leis dos países. E isso sempre diante de escândalos internacionais, que envolvem figurões e celebridades.

No julgamento de Daniel Alves, o tribunal da cidade catalã de Barcelona começou bem e terminou mal. E terminou mal ao estuprar a lei criminal, no que toca à prevenção geral contida na pena.

Essa prevenção é endereçada a todos os membros da sociedade e tem por meta dissuadir, inibir, condutas criminosas. A decisão do Tribunal de Barcelona, ao libertar Daniel Alves da prisão acautelatória, gerou espanto e ofendeu as mulheres mundo afora.

Ao contrário, o brasileiro Superior Tribunal de Justiça (STJ), que se autodenomina tribunal da cidadania, começou mal e acabou muito bem, no caso do ex-jogador Robinho, que está a caminho da cadeia por estupro coletivo.

Atenção: numa comparação entre Espanha e Brasil, dois Estados democráticos, um monárquico constitucional e o outro republicano, as leis penais e processuais não são tão diferentes. Os aplicadores das leis, comparados os casos Daniel Alves e Robinho, sim.

Logo depois do estupro atribuído a Daniel Alves, a justiça espanhola impôs a prisão preventiva e a manteve até o final do julgamento de primeira instância.

No Brasil, o STJ não decretou a prisão cautelar de Robinho ao receber a solicitação da Itália de homologação e cumprimento da pena estrangeira aqui, ao contrário do que se faz, como regra, no Supremo Tribunal Federal (STF), tomando como exemplo as extradições.

A inicial decisão cautelar espanhola de prisão de Daniel Alves chamou a atenção dos cidadãos brasileiros, com muitos elogios e críticas à nossa Justiça.

Durante a euforia, ouviu-se que a Justiça espanhola deu uma lição na brasileira, não igualitária e condescendente com os ricos e as celebridades. E mais ainda, criticou-se o laxismo da nossa legislação criminal e processual.

Diante de crime sexual, quando está em jogo a liberdade de escolha do parceiro pela mulher, falou-se no Brasil que, na Espanha, ricos como Daniel Alves, e pobres, como a sua vítima, eram tratados de maneira igualitária.

Tudo mudou quando das decisões finais.

Daniel Alves recebeu pena branda (quatro anos e seis meses) e pode pagar caução para aguardar em liberdade a definição do processo, o chamado trânsito em julgado da decisão.

No Brasil, a pena mínima para o estupro é de seis anos. A máxima pode ultrapassar os dez anos.

Num resumo, Daniel Alves recebeu, em primeira instância, pena de prisão branda e cadeia acautelatória com tempo curto de duração. E a contracautela liberatória não se justificava, diante da condenação por estupro.

No Brasil, quem está preso preventivamente e é condenado em casos graves como o hediondo estupro não recebe a liberação da prisão. E nem contracautela alternativa, diante do crime hediondo.

Robinho, depois de esperneio inconvincente, irá cumprir a pena de nove anos de reclusão imposta na Itália pelo estupro coletivo. Foi determinada a sua custódia cautelar imediata pelo STJ.

Por se tratar de crime hediondo, inafiançável e com presunção de periculosidade social, Robinho não vai poder recorrer em liberdade.

O seu recurso ao STF, para tratar de questões constitucionais, não terá o efeito de suspender a homologação e a prisão acautelatória.

Na Espanha, a apelação apresentada pela defesa de Daniel Alves não terá sucesso. Ao mudar três vezes as versões, começando com a negativa da autoria e terminando com a admissão de relação sexual anuída, Daniel Alves perdeu credibilidade.

Os relatos da vítima do estupro foram coerentes, coincidentes, e as imagens de vídeo recuperadas não desmentiram o contado pela mulher estuprada.

O recurso da assistência de acusação para aumento de pena de Daniel Alves dependerá, para ter sucesso, de apoio recursal expresso do Ministério Público.

Outro ponto. A contracautela concedida pelo Tribunal de Barcelona, consistente em caução de 1 milhão de euros, acompanhada das ‘perfumarias’ como a apreensão de passaporte e o comparecimento semanal perante autoridade fiscalizadora, foi mal concedida e escandalizou o mundo civilizado. Poderá ser cassada, com volta de Daniel Alves à prisão.

… Por força de emenda constitucional de iniciativa do governo Fernando Henrique Cardoso, o Brasil aceitou e se submete às decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no âmbito da OEA (Organização dos Estados Americanos).

Numa senda mais larga, evolutiva e integrada, Estados membros das Nações Unidas (ONU) criaram, pelo Tratado de Roma de 1998, o Tribunal Penal Internacional. Nunca se cogitou que seja afronta às soberanias.

Há ainda a Corte Internacional de Justiça, sediada na holandesa Haia, que existe desde 1945.

Com efeito, o mundo está globalizado, evoluiu e não há mais lugar, nas questões de direitos humanos, possibilidade de involuções. Nem adoção de retrógrado e limitado conceito de soberania nacional para acobertar covardes estupradores.

A decisão do STJ não afrontou a Constituição. Ponto e basta.”

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