Um dia de cada vez. O cotidiano de quem anda de mãos dadas com a depressão é assim, "uma luta constante para vencer e viver um amanhã melhor", como definiu Irene*, 54 anos, que convive com o transtorno desde criança. Ela faz parte dos 130.446 pacientes que buscaram atendimento psicossocial nas unidades administradas pela Secretaria de Saúde do Distrito Federal (SES) nos seis primeiros meses de 2023. Número que apresentou um aumento de 21,14% se comparado ao mesmo período do ano passado.
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Diferentemente da tristeza passageira, o sofrimento mental mais sério persiste e pode afetar negativamente a qualidade de vida da pessoa. Isolamento, baixa produtividade no trabalho ou na escola, mudanças nos hábitos de sono e alimentação e irritabilidade crescente são algumas mudanças comportamentais que indicam a necessidade de procurar ajuda. Entre os fatores de risco para o desenvolvimento de transtornos mentais, o psiquiatra cita alguns: estresse crônico, com um estilo de vida acelerado e pressão social; isolamento social, com o advento das redes sociais e a pandemia de covid-19; discriminação, pobreza e falta de acesso a serviços de saúde adequados; e mudanças na estrutura familiar, que podem gerar ambientes menos estáveis emocionalmente.
No caso de Irene, foram as dificuldades familiares que potencializaram sua depressão e ansiedade. "Comecei a sofrer com seis anos de idade, pois minha mãe 'não tinha a mente no lugar' e meu pai era alcoólatra. Lembro-me que eles me levavam para lugares inapropriados, onde eu me sentia vulnerável", relatou. Os medos, germinados na infância, ainda a acompanham. Mais tarde, se viu diante do desafio de cuidar de um filho com Transtorno do Espectro Autista. "Imagine minha luta para criar esse menino? As pessoas não sabiam o que ele tinha, quando nasceu, e eu me dedicava da forma como conseguia", recorda.
Por indicação de uma amiga, ela conheceu o Centro de Atenção Psicossocial Caps II de Taguatinga, onde faz acompanhamento psicológico desde maio. Desempregada e sem dinheiro para continuar pagando psicólogo e psiquiatra, Irene viu no atendimento gratuito uma grande ajuda. Para ela, a saúde mental afeta tudo. "Se você não está bem emocionalmente, como trabalha e segue sua vida?", questionou. Além do tratamento, o amor ao filho e sua fé não a fazem desistir.
Caminhada - No DF, existem 18 Caps destinados ao atendimento de pessoas com sofrimento mental grave, incluindo aquele decorrente do uso de álcool e outras drogas, seja em situações de crise ou nos processos de reabilitação psicossocial. O serviço ocorre por demanda espontânea ou via encaminhamento por outros dispositivos da rede de saúde ou da rede intersetorial. A assistência é realizada por equipe multiprofissional, que atua sob a ótica interdisciplinar, composta por psiquiatras, clínicos, pediatras, fonoaudiólogos, psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, equipe de enfermagem, farmacêuticos, a depender da modalidade do Caps.
Casos como o de Irene são mais comuns do que se imagina. O Brasil é o país com mais número de ocorrência de depressão na América Latina, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Dados mais recentes mostram que 11,3% da população apresenta sintomas depressivos, conforme pesquisa Vigitel Brasil, realizada pelo Ministério da Saúde e publicada em 2022. Buscar ajuda e diminuir o estigma associado à saúde mental são pilares da campanha "Setembro Amarelo", divulgada este mês, cujo objetivo é aumentar a conscientização sobre a prevenção do suicídio. Para Lucas Benevides, psiquiatra e professor de Medicina do Centro Universitário de Brasília (Ceub), embora haja muito a ser feito, cada vez mais as pessoas estão dispostas a procurar ajuda e falar abertamente sobre suas experiências, assim como mais instituições públicas e privadas estão implementando políticas e práticas de bem-estar.
O presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e coordenador da campanha "Setembro Amarelo", Antônio Geraldo explica que a depressão e os transtornos de ansiedade são mais observados em jovens. "Podemos afirmar que mais mulheres sofrem com os transtornos mentais e com maior foco entre 15 a 29 anos, exatamente na faixa etária em que o suicídio é a quarta maior causa de óbitos no mundo", destaca. Trata-se, conforme o psiquiatra pontuou, de um período no qual o cérebro ainda está em formação, acontecem muitas mudanças hormonais e não há incentivo para a promoção da saúde mental. "Além disso, o uso excessivo de redes sociais contribui para comparações e até mesmo para questões relacionadas aos corpos e a própria imagem", completou.
Vanessa*, 22, tem transtorno de ansiedade desde criança, mas os sintomas se intensificaram na adolescência, quando as cobranças em relação ao futuro tornaram-se mais frequentes. Em 2021, durante a pandemia, quando o sofrimento tornou-se insuportável, ela procurou ajuda. "Foi um período que potencializou muito medo e insegurança", desabafou. Desde então, faz terapia, acompanhamento psiquiátrico e toma medicação. Além disso, desenvolveu ferramentas de autoconhecimento para lidar com os momentos mais difíceis. "Escrevo, assisto a filmes e séries e converso com minha rede de apoio, que são minha família e meus amigos", disse.
A jovem lembra que, antes de tudo, é importante normalizar o cuidado com a saúde mental, tal como se preza por qualquer outra parte do corpo. "Ninguém questiona uma pessoa que quebrou o braço. Então, por que indagar aqueles que se abrem sobre suas emoções e pedem ajuda profissional, quando precisam?", argumentou. Nesse viés, recorda que conversar com os amigos acerca do tema foi mais fácil do que com a família. "É preciso entender que a nossa família é composta por pessoas que viveram contextos, muitas vezes, diferentes de nós, mas ter esse diálogo também os ajuda. É bom compartilhar a vida com eles".
Para Vanessa, o processo de busca por saúde mental e o exercício de autoconhecimento, acolhimento e autocuidado psicológico não é uma linha reta nem tem uma linha de chegada. "Em alguns dias, você vai estar pior; noutros, vai estar melhor. É como um batimento cardíaco, sabe? Sobe e desce, sobe e desce", comparou. O ideal, segundo ela, é buscar formas de lidar com o transtorno mental da forma mais saudável possível. "Ele [o transtorno] não te resume, você mais que isso. Mas é uma parte da sua vida. É uma caminhada", ressaltou.
*As entrevistadas usaram nomes fictícios
Onde buscar ajuda - O Centro de Valorização da Vida (CVV) presta serviço voluntário e gratuito de prevenção do suicídio e apoio emocional, 24 horas por dia e 7 dias por semana, inclusive aos feriados e finais de semana. Todas as pessoas que querem e precisam conversar podem ligar para o telefone 188 (sem custo de ligação), ou pelo site www.cvv.org.br, via chat e e-mail ([email protected]). O sigilo e o anonimato são garantidos. Em 2022, foram cerca de 3,4 milhões de atendimentos, feitos por cerca de 3.500 voluntários em 100 postos de atendimento.
"O anonimato permite à pessoa que procura o CVV se expressar livremente pelo tempo que ela quiser e da forma como se sentir mais confortável, pois, ao conversar com alguém que não conhece, muitas vezes ela consegue falar sobre coisas que normalmente não conseguiria, talvez até por medo do julgamento ou de críticas", explicou Leila Herédia, porta-voz do Centro. Vale lembrar que o voluntário não direciona ou aconselha quem liga, dado que a ideia é a pessoa poder encontrar dentro dela os recursos e os caminhos que busca. "Caso perguntem ao voluntário onde encontrar atendimento profissional, ele informará sobre a rede pública de saúde", disse Leila.
Quem desejar ser voluntário, deve passar por um curso de capacitação e seleção (conforme a agenda de cada cidade), ter mais de 18 anos, dispor de pelo menos quatro horas e meia por semana e ter vontade de ajudar as pessoas. Pessoas que quiserem se inscrever, podem acessar o site, cvv.org.br, na aba seja voluntário.
Palavra de especialista - Dra. Elisa Reifschneider, psicóloga clínica, coordenadora do Grupo Entrelinhas — CAEP/IP/UnB
Suicídio é uma questão de saúde pública extremamente importante. Embora atinja a muitas pessoas, parece por vezes um tema muito técnico, inacessível. Falar de suicídio é falar sim do apoio especializado necessário a quem está em crise, mas é falar também e muito da promoção da saúde mental no dia a dia. É falar da construção de espaços acolhedores e acessíveis a todos, de relações de trabalho justas e dignas, do respeito à diversidade de vivências afetivas, do respeito a corpos diferentes, da normalização da busca por profissionais de saúde mental, e do acesso a estes, diante de dificuldades nesta esfera.
É falar da necessidade de pausas, da experiência universal de se estar errado às vezes, do quanto somos expostos à positividade tóxica. É falar, enfim, da imperfeição inerente à condição humana e da importância da acolhida de quem somos por inteiro.
Suicídios não são apenas fruto de sofrimento individual e familiar. A forma como vivemos, trabalhamos e nos relacionamos, e como isso foi construído historicamente, está na base da questão. A prevenção é, portanto, um cuidado que deve ser compartilhado também.
Entender este contexto maior é um passo importante. E é importante também, ainda que diante deste contexto, fazer o possível para cuidar de si. Além do tripé bastante conhecido de sono adequado, alimentação saudável e movimento físico, podemos tentar cuidar da nossa saúde mental lançando mão de diversos outros recursos.
Podemos fortalecer nossa habilidade de resolução de problemas, aprender a manejar nosso tempo e estabelecer limites, investir nas amizades que são importantes para nós, resguardar espaços de lazer, ter contato com a natureza. Podemos buscar ajuda para entender e aprender a manejar nossas emoções, nos capacitar a utilizar formas de comunicação mais saudáveis, treinar a nossa flexibilidade mental. Podemos compartilhar nossas dores, estender um ouvido amigo e sempre buscar ajuda. Fica o convite: qual é a menor coisa que você pode fazer hoje, por você e por outros, que vai na direção de uma vida mais saudável e feliz? Talvez seja possível começar por aí.
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