Em uma sociedade que culturalmente naturalizou a discriminação de gênero, a simples entrada de um transexual num estabelecimento comercial pode ser um ato de bravura diante dos riscos de constrangimento. No início da semana, quando Fabíola Silva, 49, precisou realizar a comum tarefa de comprar remédio numa farmácia de Maceió, ela sabia que, ao procurar ajuda para um problema, poderia se deparar com outro ainda maior: o preconceito.
LEIA TAMBÉM
Surpreendentemente, a história teve um final feliz. Ao ver que a carteira de identidade da cliente registrava um nome masculino, o atendente perguntou: “Como a senhora gosta de ser chamada?”. Era tudo o que ela não esperava – e o que mais precisava ouvir. “Fiquei tão feliz, saí radiante”, diz Fabíola, que iniciou o processo de transexualização há 25 anos. “É isso que a gente quer: sermos tratados como pessoas ‘normais’”. O delicado e assertivo gesto do farmacêutico é um exemplo singelo, porém certeiro para falar sobre inclusão – palavra-chave na data de hoje, 29 de janeiro, Dia Nacional da Visibilidade Trans.
Respeito é mais que necessário para essa população, que historicamente sofre todo o tipo de violência. Mas uma vida digna – independentemente do gênero – só se locupleta com o trabalho. É aí que Fabíola protagoniza mais um caso singular. Após atuar por mais de 20 anos como profissional do sexo nas ruas da capital, a travesti natural de Rio Largo trabalha há 10 meses como assessora parlamentar, lotada no gabinete da deputada federal alagoana Tereza Nelma (PSDB).
“Sou a segunda trans no Brasil a ser nomeada por um gabinete federal”, revela com orgulho, ao exibir o crachá com seu nome social. “Foi importantíssimo para mim. As pessoas só nos enxergam associadas ao sexo. Hoje não me sinto assim. Sei da minha importância para a sociedade”, reconhece. Fabíola voltou a estudar e quer ingressar no curso de Serviço Social. No trabalho, ela garante que sempre foi bem tratada. “Todo mundo me aceitou. Nunca sofri preconceito e fiz amigos maravilhosos”.
Avanços em Alagoas
O processo de transexualização da assessora parlamentar foi pautado pelo ativismo incessante. Em 1997, Fabíola fundou o Movimento de Travestis e Transexuais de Alagoas, que logo se tornou a organização não-governamental Pró-Vida. No ano seguinte, quando a ONG visitava a Comunidade Quilombola de Santa Luzia do Norte, o menino Jaime Luiz Soares do Nascimento já sabia que, aos 12 anos, tinha preferência afetiva por outros garotos.
Hoje, mais conhecida como Jade Soares, a atual assessora técnica LGBT da Secretaria de Estado da Mulher e dos Direitos Humanos (Semudh) revela que o momento foi decisivo para entender sua sexualidade. “Eu nunca tinha visto uma mulher trans e nem sabia o que era LGBT, mas quando eu vi aquelas meninas lá – corpos masculinos com almas femininas –, para mim aquilo foi a desconstrução de tudo o que eu tinha”, relembra Jade.
Vinte anos após o encontro transformador, Fabíola e Jade se declaram como as primeiras travestis a ocupar oficialmente cargos públicos em Alagoas. O cargo de Jade existe há 16 anos, mas pela primeira vez é ocupado por uma mulher trans. “Faço o possível para dar orgulho ao segmento”, declara. “A Semudh trabalha 24 horas por dia, sete dias por semana. Meu celular é proibido de ficar desligado porque recebo denúncias de violência física e sexual e encaminho para a rede de assistência”.
Segundo elas, apesar de retrocessos inesperados na luta contra a discriminação, os avanços continuam. “O processo começou com o nascimento do movimento LGBT, mas depois da atual gestão do Governo do Estado evoluiu muito e mais rapidamente. Ele está no caminho certo”, avalia Jade Soares.
Para Fabíola, Alagoas está na dianteira em relação à maioria dos estados brasileiros. “Somos o primeiro Estado a ter uma conferência livre de direitos humanos LGBT, um dos poucos com acesso e acordo com o sistema prisional e um dos poucos que oferece formação continuada com a temática LGBT+ a funcionários públicos e privados. Isso é resultado das lutas do movimento, que o Governo tem dado oportunidade para transformar em políticas públicas de inclusão”.
Se no começo o movimento trans não tinha força, hoje há meninas empoderadas, que sabem das leis e dos seus deveres. “Apesar de o Governo Federal tentar cortar nossas ações, estamos aí para lutar com garra, com força e dignidade para sermos respeitadas como a gente é”, finaliza Fabíola.
Reconhecimento
Quando deixou a comunidade quilombola, Jade ingressou no movimento LGBT e iniciou a transformação do corpo com autoaplicação de hormônios. Para sobreviver em Maceió e ajudar a família, vendeu amendoim nas praias por mais de dez anos e chegou a morar na Favela Mundaú. Em 2008, voltou para Santa Luzia do Norte e fundou a ONG Metamorfose LGBT. Por lá, já organizou dez edições da Parada LGBT.
“Sempre quis trabalhar a temática no quilombo. Por incrível que pareça, a comunidade nunca rejeitou”, assegura. Desde 2013, graças à atuação de Jade, o município ostenta o título de primeiro a considerar o nome social de transexuais. A dedicação à causa rendeu outros frutos: por meio da participação na ONG Pró-Vida, ela foi convidada, em 2016, para o cargo de secretária-geral da Rede Nacional de Pessoas Trans (RedeTrans); já visitou o gabinete presidencial e participou de encontros na Organização das Nações Unidas (ONU).
“Me sinto completa. Ter vindo de um quilombo, morar numa favela, vender amendoim na praia e hoje em dia ter um crachá, uma matrícula, um carimbo e acesso à sala de uma secretaria de Estado, isso é uma honra muito grande”, comemora.
Em 2018 Fabíola Silva se tornou a primeira trans a ser oficialmente premiada no Estado de Alagoas, com o Prêmio Tia Marcelina – concedido a pessoas que lutam pela igualdade racial –, enquanto Jade foi condecorada no ano seguinte com o Prêmio Selma Bandeira, que reconhece as realizações de grandes mulheres alagoanas.
Agora, ambas sonham com a universidade. Após concluir o curso de Gestão Pública, a meta de Jade é ingressar em Direito. “Estou apaixonada pela Constituição Federal e tenho lido o Código Civil Brasileiro. Quero ser advogada e representar meus pares. Quero ser uma das advogadas trans que o Brasil pode oferecer”.
LEIA MAIS
+Lidas