"O Jardim das Cerejeiras" é um tributo antes de mais nada ao próprio tradicionalismo da companhia, nascida no Rio de Janeiro e depois estabelecida em São Paulo, que está comemorando seus 40 anos com o espetáculo.
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Parece ser ainda uma reação à primeira montagem que o diretor Eduardo Tolentino de Araújo viu de Tchékhov, "As Três Irmãs", nos anos 1970 no Oficina, e que acaba de descrever como "esgarçada".
Seu "Jardim", pelo contrário, se prende ao texto, que encena de maneira conservadora, quase museológica. Ou melhor, mais até que ao texto, abraça elementos como os figurinos da encenação russa de um século atrás.
O curioso é que aquela montagem histórica de 1904 no Teatro de Arte de Moscou, referência para o teatro e o cinema contemporâneos, sobretudo nos EUA, foi na contramão do que queria Tchékhov. Mudou até o texto.
O autor, que morreria logo depois, se revoltou principalmente porque o diretor, Stanislavski, havia transformado o que Tchékhov imaginava ser uma comédia num drama carregado de lágrimas.
Nas últimas décadas, no exterior e aqui, várias montagens vinham buscando recuperar também a face cômica buscada por Tchékhov, mas não é o caso. O "Jardim" do Tapa é novamente drama.
Mas há divergências na interpretação. Os irmãos da aristocracia decadente, feitos por Clara Carvalho (Liuba ou Madame Raniévskaia) e por Brian Penido Ross (Gaev), se concentram no dramático, no sentido de comovente.
Clara, grande atriz, desta vez tem cenas que começam arrebatadoras, mas se esvaziam. Ross, também de atuações bem-sucedidas, inclusive no Tapa, tem dificuldade para firmar o ritmo autodepreciativo de seu papel.
Gaev e outros personagens que podiam resultar cômicos, como o Epikhodov de Paulo Marcos, frustram seguidamente e fazem ansiar pelo retorno ao palco do Lopakhin de Sergio Mastropasqua.
É ele o antagonista daquele mundo que decai, mas ganha ares de protagonista por ser o que mais aproxima a encenação do Brasil de hoje –enquanto a encenação se esforça em apagar paralelos com a realidade do país.
O Lopakhin de Mastropasqua surge como um retrato acabado da teologia da prosperidade, da ética neomercantilista que gerou fenômenos eleitorais como Jair Bolsonaro e o Partido Novo e domina as madrugadas da Igreja Universal na televisão.
Há meio século, o escritor Antonio Callado escreveu celebremente que "poucos escritores estrangeiros são mais 'brasileiros' que Tchékhov" por ver fazendeiros de café e senhores de engenho em personagens como Liuba.
Mas agora a brasilidade do dramaturgo russo aparece mais noutros papéis, quase inevitavelmente.
Em duas horas, este "Jardim" não oferece uma apresentação prazerosa, envolvente, ou personagens menores bem delineados, como é costume esperar com Tchékhov. Mobiliário e objetos cênicos aparentam ser reciclados.
Mas ele ecoa na mente do espectador por horas. E é assim um tributo fiel ao Tapa, grupo que já teve momentos melhores e piores, mas sempre como a expressão mais próxima de uma companhia de repertório no país.
Com textos de referência, "clássicos" modernos pouco montados, de Martins Pena a Vianinha (Oduvaldo Vianna Filho), de Molière a George Bernard Shaw, não é pouco o que o espectador de São Paulo deve ao Tapa.
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