Previsto na Constituição, o tribunal do júri julga crimes dolosos contra a vida — como homicídio e feminicídio. A Constituição prevê que um dos princípios do julgamento popular é o da "plenitude de defesa", mais abrangente que a ampla defesa dos outros processos criminais.
O mecanismo permite, na prática, que qualquer argumento que permita a absolvição do réu seja usado pela defesa, mesmo que a tese envolva uma questão que vai além do direito.
Assim, é possível apelar para a clemência dos jurados, por exemplo. Nessa brecha, também passou a ser aplicada a tese da legítima defesa da honra.
A legítima defesa da honra não tem base jurídica e não se confunde com o mecanismo da legítima defesa do Direito Penal, que permite a um cidadão rebater uma agressão injusta de outra pessoa, por meios moderados, na intensidade suficiente para cessar o perigo.
Outros votos
O ministro Gilmar Mendes também votou contra o uso do argumento tanto pela defesa, quanto pela acusação, além de policiais e do juiz, durante a fase de investigação e do processo, sob pena de nulidade do julgamento.
Toffoli acolheu a proposta. "Vivemos em uma sociedade marcada por relações patriarcalistas, que tenta justificar com os argumentos mais absurdos e inadmissíveis as agressões e as mortes de mulheres, cis ou trans, em casos de violência doméstica e de gênero", disse Mendes.
Segundo o ministro, a tese da legítima defesa da honra é usada "para justificar (manifestamente de modo absurdo e inadmissível) atos aberrantes de homens que se sentem traídos e se julgam legitimados a defender a sua honra ao agredir, matar e abusar de outras pessoas".
O ministro Edson Fachin votou no sentido de conferir uma interpretação a uma regra do júri de forma a permitir que a decisão da segunda instância que anula o júri pelo uso da legítima defesa da honra não viole a soberania dos vereditos — princípio que não permite a revisão do mérito da decisão do júri, mas não impede que o tribunal que analisa o recurso contra a tese determine a realização de um novo julgamento. "Júri é participação democrática, mas participação sem justiça é arbítrio", escreveu.
Para o ministro Alexandre de Moraes, o argumento da legítima defesa não pode continuar a ser referendado no sistema de Justiça.
"O Supremo Tribunal Federal, no exercício de sua competência institucional de defesa da ordem democrática e da supremacia da Constituição, não pode continuar ratificando o argumento da legítima defesa da honra do acusado, que, como visto, até décadas atrás, no Brasil, era o que mais absolvia os homens violentos que matavam as suas esposas, companheiras, namoradas, mulheres, e que não mais encontra guarida à luz da Constituição de 1988, sob pena de ofensa aos princípios da dignidade, da igualdade, da vida e da proibição à discriminação", afirmou.
Luís Roberto Barroso acompanhou o relator e afirmou que o voto dele "coloca freio à lastimável e preconceituosa tese da legítima defesa da honra, que ainda continua a ser brandida nos tribunais do júri Brasil afora". Na linha do ministro Edson Fachin, Barroso fez a ressalva da necessidade de se evitar o uso, ainda que de forma indireta, da tese nos recursos à segunda instância.
De acordo com a ministra Cármen Lúcia, a tese jurídica de legítima defesa da honra não tem amparo legal. "Construiu-se por discurso proferido em julgamentos pelos tribunais e firmou-se como forma de adequar práticas de violência e morte à tolerância vívida na sociedade aos assassinatos praticados por homens contra mulheres tidas por adúlteras ou com comportamento que fugisse ou destoasse do desejado pelo matador", declarou.
O presidente do tribunal, ministro Luiz Fux, acolheu o entendimento de que é preciso interpretar a regra do Código de Processo Penal sobre o recurso à segunda instância, de forma a evitar tornar ineficaz a proibição da aplicação do argumento.
Fux também apontou que os efeitos da cultura "machista, misógina, que ainda impera em nosso país" se refletem nos números da violência contra a mulher.
"A cultura machista, misógina, que ainda impera em nosso país e coloniza as mentes de homens e mulheres, seja de modo refletido ou irrefletido, consciente ou pré-consciente, não precisa de outra prova além dos números da violência doméstica e do feminicídio registrados nas tristes estatísticas policiais", escreveu.
Segundo ele, é "devastador constatar" que, durante a pandemia, que a violência contra mulheres cresceu ainda mais, "revelando quadro em que as vítimas são forçadas a viver enclausuradas com seus algozes".