A chegada do fim do ano é sempre motivo de preocupação para Joel dos Santos, 26 anos, morador do quilombo Cajá dos Negros, no Semiárido nordestino. A apreensão não é para menos. A comunidade dele fica no município de Batalha, a 182 quilômetros de Maceió, e faz parte da área mais afetada pela seca, fenômeno que promete ser mais intenso que nos últimos anos. Segundo o relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, divulgado em agosto pela ONU, quase 33% do estado de Alagoas foi afetado pela desertificação, que tem como característica principal uma evapotranspiração seis vezes maior que a média de chuva anual, tornando o solo infértil para o plantio e comprometendo a produção de alimentos e a sobrevivência de animais e dos moradores. O Semiárido não dispõe de rios perenes, que poderiam acumular a água da chuva para minimizar a falta do produto na região, nem tem uma política pública continuada para ajudar a população a conviver com os longos períodos de estiagem.
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“No verão, não dá para plantar nada, porque é tudo seco demais. Até as palmas (espécie de cacto abundante no Nordeste) morrem, porque o sol é quente mesmo. Quando chega nesse período, fica complicado, não dá positivo para a gente. Passar sede é ruim”, lamenta Santos, que gostaria de ter uma cisterna em casa para enfrentar mais uma temporada de seca. “As secas anuais são esperadas, fazem parte da nossa realidade climática. Mas elas têm se agravado nos últimos tempos, por causa dos grandes empreendimentos, da monocultura, da mineração, que provocam uma devastação muito grande da Caatinga”, explica Cícero Félix, da Coordenação Nacional da Articulação do Semiárido (ASA). Ele acrescenta que a Caatinga, principal vegetação do Semiárido, foi devastada em quase 50%, provocando grande impacto na vida da população e acelerando o processo de desertificação.
Além de Alagoas, a liderar o ranking das unidades federativas mais castigadas pela seca, a desertificação do Semiárido atinge os outros oito estados do Nordeste e o norte de Minas Gerais, afetando mais de 1,2 mil municípios e 26 milhões de pessoas. Para João Suassuna, agrônomo e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, em vez de combater a seca, um fenômeno natural, é preciso investir em tecnologias para conviver com a realidade. Ele vai além e aponta o Semiárido como uma região com potencial econômico, mas lamenta o uso político do problema, a inviabilizar o desenvolvimento local. “Muitos costumam fazer política com o sofrimento e a miséria do povo. A utilização eleitoral dos carros-pipa é um exemplo. Ou você dá água ao cidadão ou em dois dias ele está morto”, ressalta.
Em setembro último, o governo federal suspendeu a distribuição de água por meio de carros-pipas, dificultando ainda mais a vida da população afetada pela seca, que não pode pagar em torno de 300 reais por caminhão de água.
Com origem na agricultura familiar do sertão pernambucano, o deputado federal Carlos Veras (PT), presidente da Comissão de Direitos Humanos na Câmara e membro da Frente Parlamentar de Defesa e Convivência do Semiárido, chegou a aprovar dois projetos para ajudar as famílias que sofrem com a seca, mas ambos foram vetados por Jair Bolsonaro. As propostas tratavam da construção de cisternas na região, prorrogação de dívida dos agricultores, crédito e auxílio financeiro para os moradores afetados. “O problema não é a falta de chuva, mas sim falta de recursos para que essa gente tenha armazenamento de água que garanta a produção agrícola e o consumo humano”, dispara Veras, lembrando que a bancada do PT na Câmara entrou com uma ação junto ao STF para obrigar o governo federal a executar o orçamento para a construção de cisternas.
Sem políticas públicas voltadas para a convivência com a seca, a maioria das pessoas que vive no Semiárido se encontra na mesma condição de Santos, entregue à própria sorte, e boa parte delas faz parte dos mais de 19 milhões de brasileiros que passam fome. Além de lidar com a sede, essas pessoas não têm como produzir seu próprio sustento. “A seca tem um impacto na saúde, na moradia, na educação e em todas as dimensões da vida, tanto na área rural quanto na urbana. O maior drama é a falta d’água para produzir alimentos. Com as terras inférteis, elas não têm como comer. A face mais cruel da desertificação é a fome”, lamenta Félix, da ASA.
Em condições opostas a Santos e à maior parte da população do Semiárido estão Edimar Andrade Silva e Cícera Lopes Silva, um casal que vive na comunidade de Pedra d’Água, no município de Juazeirinho, no Seridó paraibano, distante mais de 300 quilômetros de João Pessoa. Eles são proprietários de um agroecossistema com, aproximadamente, 8 hectares, com roçado, quintal produtivo, aves, pecuária e fruteiras. O local pode ser considerado um verdadeiro oásis em meio à desertificação. Mas isso só é possível porque eles dispõem de cisternas e outros depósitos para acumular água da chuva, utilizam a tecnologia de filtragem e reutilização do produto, adotam práticas agroecológicas e evitam o desmatamento.
“Janeiro e fevereiro, às vezes, dá uma chuvada, mas o período de chuva mesmo aqui é em março e abril. É muito curto. Quando é inverno bom, controlado, chove até 400 milímetros, mas este ano mesmo acho que não choveu nem 100 milímetros”, conta seu Edimar, explicando que a água da chuva que acumula na cisterna dura entre seis e oito meses, porque é exclusiva para beber e produzir alimentos. A água para banho, lavar roupas e louças é armazenada em um depósito à parte, para depois passar por um processo de tratamento rústico e ser reaproveitada na agroecologia.
A experiência positiva do casal paraibano deu-se graças a tecnologias e à formação técnica e ambiental a que teve acesso. Félix ressalta o trabalho desenvolvido pela ASA na região. “Mostramos que é possível conviver com o Semiárido, aprender com a natureza e com as populações locais, desenvolver conhecimento, se apropriar de tecnologias desenvolvidas ao longo de séculos pelas populações, por estudiosos e centros de pesquisas locais e dialogando com outras regiões semiáridas do planeta. E a captação, armazenamento e gestão da água da chuva são essenciais dentro dessa perspectiva da convivência com o Semiárido”, explica.
“Melhoraria bastante se nós tivéssemos cisternas para, quando chover, juntar água. Muitos aqui têm suas cisternas, mas eu não tenho. Fico sempre apelando a um e a outro por um pouco d’água, é sempre complicado. A cisterna seria boa para juntar água no tempo de chuva, para quando chegar a seca ter o que beber e fazer tudo”, almeja Joel dos Santos, que além de não ter água, não tem emprego nem recebe nenhum auxílio do governo. “Para manter nossa família, temos de trabalhar na roça mesmo. Trabalhar para comprar as coisas de comer. Quando aparece trabalho, a diária que os fazendeiros pagam para cuidar dos bichos dele é de 50 reais. Se for para trabalhar o mês todo, pode ser que dê 500 e poucos a 600 reais. Mas nem toda hora tem serviço. Tem hora que tem, tem hora que não tem.”
No fim de setembro, a ASA lançou a campanha Tenho Sede, com o propósito de mobilizar o poder público e a sociedade civil para arrecadar recursos e custear a construção de 1 milhão de cisternas no Semiárido. A campanha tem como garoto-propaganda o cantor Gilberto Gil, que, de forma voluntária, regravou a música Tenho Sede, de Dominguinhos e Anastácia.
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