Contextualizando

Opinião: “Por que nossa política externa trabalha com o ranço ideológico do passado?”

Em 16 de Agosto de 2024 às 18:00
O terceiro mandato presidencial de Lula (PT) foi até animador no que diz respeito à política externa brasileira.
Um ano e oito meses após a posse, declarações do presidente e ações do governo no contexto internacional proporcionam um contexto.
E tudo tem a ver com a postura do próprio, como avalia o jornalista, escritor e ex-deputado federal Fernando Gabeira:

“Para começar, é preciso reconhecer que o governo Lula rompeu o isolamento que Jair Bolsonaro trouxe para o Brasil.

Antes mesmo da posse, Lula da Silva foi a Sharm el-Sheik, no Egito, e afirmou que o Brasil estava de volta, inclusive, e principalmente, assumindo seus compromissos com a preservação do planeta.

Foi um excelente começo, porque não só rompia o isolamento, como também definia o tema no qual o Brasil seria um interlocutor de peso no diálogo internacional.

Mas a política externa brasileira tem outros fundamentos, como a defesa da paz, a contribuição para a solução de conflitos entre os países. Sair do isolamento significava também aplicar uma visão política que marca essa vocação brasileira, sobretudo na área do mundo em que sua influência é maior.

Todas as tentativas conciliatórias foram problemáticas. A primeira delas, guerra da Rússia contra a Ucrânia, foi marcada por declarações de Lula que repercutiram mal. A primeira delas buscava uma equivalência entre o invasor e sua vítima, responsabilizando também a Ucrânia. A segunda criticava a ajuda ocidental aos ucranianos. Jornais franceses chegaram a afirmar que Lula era adversário do Ocidente. Como não distinguem o presidente da política nacional, tem-se a impressão de que o Brasil também abandonou o Ocidente, o que não corresponde a um processo real e internamente amadurecido.

No outro grande conflito que envolve o Oriente Médio, o Brasil, na minha opinião, tomou o rumo certo condenando o atentado terrorista do Hamas e, depois, criticando a resposta desmedida de Israel. Mais uma vez aí, uma frase de Lula, comparando o sofrimento em Gaza com o produzido por Adolf Hitler, acabou saindo do tom.

Mas é na sua área de influência, na América Latina, que a diplomacia presidencial brasileira cultiva seus grandes problemas. Lula convidou Nicolás Maduro, deu-lhe tratamento especial e disse que precisava refinar sua narrativa para que a democracia venezuelana fosse reconhecida.

O processo que levou às eleições do 28 de julho teve uma participação decisiva do Brasil, sobretudo nos Acordos de Barbados. O País, entretanto, ao contrário dos EUA e da Europa, não soube ou não quis perceber que Maduro caminhava para rasgar os termos do acordo. Ele não só proibiu a candidatura de María Corina Machado, como também vinha prendendo sistematicamente os opositores, na base de um caso a cada três dias.

O Brasil enviou um emissário a Caracas, no dia das eleições. No mesmo dia em que Celso Amorim desembarcava, três ex-presidentes latino-americanos eram proibidos de entrar na Venezuela, assim como alguns parlamentares estrangeiros eram expulsos.

O Brasil silenciou. Amorim foi uma discreta testemunha do processo eleitoral. Tão discreto que não protestou contra a proibição que o conselho eleitoral impôs aos fiscais oposicionistas, impedindo que acompanhassem a apuração. Logo em seguida, começou a ampla repressão contra o povo venezuelano.

Diante disso, o Brasil pediu que Maduro mostrasse as atas eleitorais. Até hoje não obteve resposta, e provavelmente não a receberá.

O resultado de todo esse desenho brasileiro para a Venezuela será a prisão e morte de muitos, a continuidade de Maduro e uma nova onda migratória com consequências no Brasil, na Colômbia, no Chile e provavelmente até na campanha presidencial norte-americana.

Como se não bastasse tudo isso, o Brasil ainda viu seu embaixador expulso na Nicarágua. Nesse caso específico, o País fazia o que suas diretrizes pacificadoras recomendam: intervinha contra a forte repressão aos católicos.

Discretamente, o Brasil expulsou também a embaixadora da Nicarágua. Mas não quis falar abertamente do absurdo que se tornou o governo de Daniel Ortega, não o denuncia em nome da liberdade e dos direitos humanos.

Esse é o tema central que poderia firmar nossa liderança. No entanto, tanto na Venezuela como na Nicarágua, há timidez em afirmar princípios que deveriam ser a base da influência brasileira, fora do campo especificamente ambiental.

Existe algo que possa unificar todos os equívocos? É possível destacar um ponto que trava o avanço do Brasil para realizar suas potencialidades?

O problema central é a diplomacia feita com as posições do presidente. Ela decola de um campo ideologicamente minado e vai produzir novos equívocos.

Infelizmente, o Congresso é omisso. Discute-se pouco política externa no Brasil. Mas é fundamental que se afirme no País a tese de que nossas posições nesse campo precisam ser construídas em consenso. Um presidente não pode apenas expressar a visão de seu partido.

É hora de colocar as coisas no lugar. Se as eleições realmente trouxeram ao poder uma coligação democrática, por que nossa política externa não reflete com nitidez esse conjunto de forças, mas trabalha com o ranço ideológico do passado?

Avançamos ao romper o isolamento em que Bolsonaro colocou o Brasil. Mas pouco adianta apenas voltar ao convívio internacional, se não utilizamos, além da questão ambiental, outros valores que são fundamentos de nossa política externa.

De nada adianta o Brasil voltar com um viés de cumplicidade com Vladimir Putin, Maduro, Ortega e outras figuras que apenas mancham a imagem do País.”

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