Para familiares e colegas, Luis Alexandre de Oliveira Lessa era um jovem de 20 anos, soldado do Exército e lutador de jiu-jitsu. No ambiente virtual, porém, ele se tornava o "Hitler da Bahia" e liderava um grupo de adolescentes no Telegram que praticou estupro virtual, com incentivo à automutilação, pedofilia e "violência por diversão", segundo o MP-SP.
O que aconteceu
- Lessa foi preso em novembro de 2024, em Salvador, acusado de liderar o grupo virtual "Panela Country". As investigações começaram em outubro daquele ano, após denúncia anônima, e descobriram rapidamente diversas vítimas em vários estados. A operação Nix, que agiu simultaneamente em São Paulo, Pernambuco, Bahia, Minas Gerais e Distrito Federal, prendeu Lessa e apreendeu três adolescentes;
- "Panelas" são pequenos grupos virtuais de jovens e adolescentes em redes sociais como Discord e Telegram. Os integrantes, chamados de "paneleiros";
- A "Panela Country" foi fundada por dois adolescentes e passou de 600 membros. Os jovens, menores de idade que foram apreendidos, eram conhecidos no ambiente virtual como Inative e Nêmesis. Lessa, o Hitler da Bahia ou Sagaz, é apontado pelo MP-SP como um dos líderes, e o único maior de idade, ao lado de Vitin, Lunatic e Maverick —mas todos abaixo de Lessa. Zeinpod, também apreendido, é o responsável pelos grupos de estupro virtual, ligados à comunidade;
- Nesses grupos, "a violência é tratada como uma forma de diversão", diz o MP-SP. Os membros "comemoram e se divertem à custa do sofrimento alheio, demonstrando pouca ou nenhuma empatia pelas vítimas, sejam humanas ou animais", afirmou o desembargador Teixeira de Freitas, do Tribunal de Justiça de SP, ao negar pedido de habeas corpus feito pela defesa de Lessa;
- Lessa foi denunciado por uma série de crimes: pedofilia, violência psicológica contra mulher, cyberbullying (intimidação sistemática virtual), perseguição, incitação ao crime, divulgação de pornografia, invasão de dispositivo de uso da polícia e divulgação de informações sigilosas. Por ser militar, ele foi levado ao 6º Batalhão de Polícia do Exército, mas nesta semana a Justiça autorizou sua transferência para uma cadeia pública enquanto aguarda julgamento;
- Procurada pelo UOL, a defesa de Lessa disse que só se manifestaria no processo. Após a publicação da matéria, o advogado Murilo Silva de Oliveira divulgou uma nota rebatendo a acusação do MP-SP. "Desde o início, o Sr. Luís tem demonstrado total disposição para colaborar com as autoridades e reafirma sua confiança no devido processo legal e na imparcialidade do Poder Judiciário", diz um trecho do comunicado;
- A reportagem também entrou em contato com o Telegram e o Exército sobre a investigação, mas não houve resposta. O espaço está aberto para manifestação;
Como o grupo agia
- O aliciamento para o grupo ocorre com desafios, que viram manipulação emocional e exploração sexual. Os jovens precisam cumprir tarefas para obter respeito e notoriedade dos integrantes. O desafio mais comum, segundo a investigação, é a "plaquinha" —escrever o nome da "panela" num papel e fotografar-se, o que inclui versões mais extremas como escrever na pele usando um objeto cortante;
- Esse tipo de foto, divulgada em outras comunidades e redes sociais, serve para comprometer e prender os jovens ao grupo. Ao entrarem na panela, eles adotam um apelido e são envolvidos em relacionamentos virtuais com troca de conteúdos íntimos. Depois, os líderes e outros membros ameaçam expor as vítimas, que são forçadas a fornecer mais imagens ou realizar atos cada vez mais graves, incluindo transmissões ao vivo de práticas explícitas e degradantes;
"Os jovens fornecem voluntariamente imagens comprometedoras, como forma de fortalecer laços afetivos, mas acabam se tornando vítimas de chantagem sexual [sextortion]"
Trecho da denúncia do MP-SP, obtida pelo UOL.

- As vítimas dos ataques sexuais são quase sempre mulheres, mas meninos também sofriam ameaças e extorsões. Os agressores, majoritariamente adolescentes homens estupravam virtualmente, coagiam e chantageavam principalmente mulheres e meninas, que eram levadas a exibir-se sexualmente e realizar atos libidinosos contra a sua vontade, em sessões ao vivo, vistas por outras pessoas;
- Há relatos de introdução de objetos cortantes nos genitais e sessões de autolesão também sob coação e chantagem. A vítima utiliza um objeto cortante para escrever o nome do líder da comunidade em partes específicas do corpo (preferencialmente colo, parte interior das coxas, glúteos e genital). Isso é considerado uma forma de "homenagem";
- Animais costumam ser violentados em sessões de tortura. A denúncia fala em gatos, cachorros, pássaros, sapos e outros animais de pequeno porte;
- Lessa é apontado também como líder de um ataque em massa contra uma jovem de 16 anos e sua família. Segundo as investigações, ele convocou membros do "Panela Country" para atuar na panela "Tribunal Federal Country", onde expôs fotos íntimas da jovem e dados pessoais de amigas e parentes dela, obtidos em bancos de dados sigilosos (inclusive sistemas policiais). O grupo passou a fazer ligações e mandar uma enxurrada de mensagens perturbadoras para eles;
- Já o adolescente Nêmesis confirmou que circulava fotos íntimas e de mutilações de menores de idade no Telegram. Em trecho do depoimento, ao qual o UOL teve acesso, ele alega que "as meninas se ferem, se machucam ou se colocam em situações vexatórias a fim de serem aceitas" e que as imagens foram enviadas para ele de forma consentida;
- Família foi procurada por parente de vítima. A mãe e o pai de Nêmesis contaram à polícia que souberam dois meses antes da operação, por um irmão da adolescente, que o filho ameaçava expor as fotos íntimas e que o confrontaram. Ele negou, primeiro, e depois disse que não divulgaria as fotos;
- Pai chegou a ser preso por uma semana e filho demonstrou-se "frio", diz a polícia. A investigação revelou que o filho usou o pai para abrir várias contas bancárias, fez selfie dele e usou seus dados. O pedreiro de 56 anos —analfabeto, morador de Camaragibe (PE) e com pouco contato com dispositivos eletrônicos— passou a receber dinheiro ilícito relacionado ao filho, sem ter conhecimento do esquema criminoso. À polícia, Nêmesis se disse hacker, "podendo invadir qualquer site hospedado na internet";
Militar foi afastado do Exército
- Lessa exibia sua patente militar para se promover no grupo. Nas fotos que aparecem na denúncia, ele veste uniforme do Exército. Também há relato de que, ao ser entrevistado para a carreira militar, disse "querer servir a pátria como seus familiares serviram";
- Ele entrou no Exército em março de 2024, foi afastado por um problema no joelho, e recorreu. Ele alegou que a lesão era decorrente dos exercícios feitos no quartel. A Advocacia-Geral da União contestou o pedido de reintegração, dizendo que sindicância mostrou que sua condição física era anterior à entrada na corporação. "Caso a lesão tivesse sido informada à comissão de seleção, ele certamente não teria sido selecionado para prestar serviço militar", afirmou Márcio Capistrano, advogado da União.