“Olha o sucateiro!”, gritavam os trabalhadores que recolhiam todo tipo de metal pelas ruas das principais capitais brasileiras na década de 80. Panelas, vasilhas ou qualquer outro utensílio em desuso faziam a alegria da garotada, que os trocava por doces ou balões em uma cena antes comuns mas agora vista mais raramente.
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Esse trabalho de "formiguinha", que livra o meio ambiente de toneladas de metais, também esconde uma economia dinâmica e milionária, um nicho de mercado escondido em meio a "tralhas" e ferrugem cujas contas fazem inveja a muitas atividades “asseadas”.
Estatísticas apontam que anualmente só de aço bruto são produzidos mais de 35,2 mil toneladas no Brasil. Desse montante, cerca de nove milhões vêm da sucata, valor que corresponde a 26% de toda a produção nacional.
Os números mensurados com base em dados de faturamento dos ferros velhos visitados pela equipe do TNH1 em Maceió mostram que as sucatas escondem um verdadeiro tesouro econômico, um “ouro velho” que pode surpreender a muita gente que jamais pensaria em pisar em uma empresa tão insalubre quanto um ferro-velho.
Por ano, os quase 20 depósitos de sucata localizados da Capital faturam em média R$ 350 mil cada, gerando um invejável faturamento de R$ 7 milhões no mesmo período e centenas de empregos informais.
Cada um por si
Aparentemente desorganizadas, as quase duas dezenas de ferros-velhos espalhados por Maceió obedecem a critérios próprios formatados na prática diária, no entanto, sem uma legislação específica ou entidade representativa.
É cada um por si e muito trabalho para todos. Seja na fase da coleta e separação nos depósitos, seja no escoamento da produção para as fundições locais ou para açarias localizadas fora de Alagoas.
A quantidade de aço extraída pelos sucateiros alagoanos é tão significativa que boa parte dela segue em direção aos estados vizinhos, principalmente Pernambuco.
Ilegalidade com os dias contados
Além do aspecto desleixado e do ambiente insalubre, alguns ferros-velhos clandestinos trabalham no comércio ilegal de peças veiculares. São peças semi-novas sem comprovação de procedência que são livremente comercializadas ‘por baixo dos panos’.
A ainda desconhecida Lei nº 12.977 ou "Lei do Desmanche", que visa ao reaproveitamento de peças seminovas nos reparos feitos pelas seguradoras em veículos danificados, já foi sancionada pela presidência da República e está em fase de implantação em todo o país, com prazo final para junho de 2015.
Nela está prevista a regularização dos chamados ‘desmanches’, que terá de ser registrado e ter suas peças com procedência comprovada por nota fiscal. Na prática, o comércio já existe, mas aparentemente não há como controlar a chegada e saída de sucatas, incluindo pedaços de peças veiculares.
A medida pretende acabar também com o lucro obtido atualmente no mercado paralelo, tornando legalizados os profissionais que já trabalham em oficinas e desmontes e ferros-velhos, clandestinamente.
Zequinha, o "Rei da Sucata"
Quem o vê caminhando calmamente por entre as sucatas de seu comércio, localizado na Avenida Durval de Góes Monteiro, no bairro do Tabuleiro do Martins, nem imagina que o homem levemente encurvado, com profundas marcas no tempo no rosto, é considerado no universo da reciclagem de metais como o Rei do Ferro Velho, uma espécie de “Rei da Sucata” alagoano. “Seu Zequinha” é o mais antigo sucateiro em atividade em Maceió.
José Bezerra da Silva Filho é respeitado entre os colegas mais novos por recolher metais há mais de quatro décadas pelas ruas de Maceió. Do alto de seus 82 anos de idade, ele afirma que não sente vontade de parar de trabalhar. “Este ano pretendo diminuir o ritmo, pois me sinto cansado, mas parar de vez não está nos meus planos”, garante.
Ele conta que começou a mexer com sucata quando já tinha tentado de tudo profissionalmente, nos idos de 1970. “Trabalhei em uma hospedaria, depois montei um armazém de cereais, mas fali em meses. Foi quando comecei a ajudar um amigo sucateiro e em poucos dias, montei meu próprio negócio e não parei mais”, relembra.
As marcas nas mãos do operário do ferro-velho demonstram que “Seu Zequinha” nunca teve medo de trabalho. Cada calo conta uma história de luta, onde o personagem principal caminhava longas distâncias entre as ruas do bairro, arrecadando todo tipo de metal entre os moradores, para sustentar a família.
Casado há 55 anos, Zequinha conseguiu criar cinco filhos com o dinheiro ganho em seu ferro-velho. Seus dois filhos homens herdaram do pai o dom de lidar com o metal, e trabalham até hoje no ramo, mas com recuperação de peças. Além deles, suas três filhas também foram criadas com o sustento tirado da reciclagem de metais.
Atualmente o “reino” de Zequinha é composto por cinco funcionários. “Eu só tenho a agradecer a Deus por tudo que chegou as minhas mãos através da sucata”, alegrou-se. “Eu sou a prova de que vale a pena se esforçar em ter uma vida melhor, é só não ter medo de trabalho duro”, aconselhou Zequinha.
Trabalho que faz a diferença
Os metais ferrosos são os únicos itens encontrados na natureza que podem ser reaproveitados em sua totalidade e transformar-se em peças novas. Tanto que a sucata é responsável por mais de 1/4 do material que sai novinho do Brasil em direção às indústrias no exterior. Se deixado exposto às intempéries, o metal costuma levar de 300 a 500 anos para deteriorar-se completamente e voltar ao solo, em forma de minério de ferro.
Ambientalistas garantem que cada tonelada de metal reaproveitado resulta na economia de 1140 kg de minério de ferro, 154 kg de carvão e 18 kg de cal. No caso das ‘açarias’, o aço pós-uso é necessário para que um novo metal seja feito, ou seja, cada unidade é uma recicladora em potencial. O aço costuma voltar ao mercado em forma de automóveis, ferramentas, vigas e até utensílios domésticos.
Retíficas e fundições transformam sucatas em peças novas
O TNH1 acompanhou o processo que transforma o ferro-velho em peças prontinhas para serem reempregadas nas mais diversas utilidades.
Limpas, o ferro-velho prensa os retalhos de metal em fardos para facilitar o transporte, negocia com as usinas de fundição e leva tudo até o local onde ele será derretido e transformado em elementos primários, utilizados amplamente na recuperação de máquinas que ainda estão na ativa.
O ambiente na fundição tem temperatura alta. O espaço é dividido entre o forno onde os metais são diluídos a uma temperatura média de 1500°C, buracos revestidos por pó de grafite, onde os moldes são enterrados, e um espaço menor reservado para a matéria-prima e o carvão “coque” utilizado no forno. O coque é um subproduto do carvão mineral, feito a partir da queima de madeira.
Cada metal possui um tempo diferente para derreter. Enquanto 30 minutos de forno já transformam a sucata de ferro em metal líquido, o bronze, por sua vez, precisa de 2,5 horas para alcançar o mesmo estado. Todos os metais, após esse processo, têm 100% de reaproveitamento.
Dado o ponto de fundição, as formas já enterradas no solo e revestidas por pó de grafite recebem o metal líquido e permanecem lá até que ele volte ao seu estado sólido, o que costuma ocorrer em poucos minutos.
O torno, equipamento utilizado para dar forma a novos elementos, tem versão manual e eletrônica, controlado por computador. Sebastião de Azevedo, torneiro mecânico há 32 anos, explica que se trata de um trabalho de paciência, pois os moldes levam de 1,5 a 4 horas para ficarem prontos. “O trabalho é de atenção, pois tudo é feito sob medida”, explicou.
Paulo Martins, um dos sócios da retífica visitada pelo TNH1, explica que não há como discernir entre peças recicladas e as novas. “O material fica exatamente igual, pois é purificado durante a fundição antes de chegar as nossas mãos”, explica Paulo.
Dali saem peças de todos os tamanhos que atendem desde microempresários até grandes empresas, como as grandes indústrias fixadas no bairro do Trapiche da Barra. Além disso, são produzidas latas para transportar tintas e alimentos, grades, esquadrias e até alicerces utilizados na construção civil.
Reaproveitamento livra o meio ambiente de 10 toneladas de sucatas por mês
Em Alagoas existem apenas duas fundições que consomem a sucata recolhia nos ferros-velhos da Capital. Uma funciona na cidade de Pilar, outra em Maceió, na conhecida Via Expressa. Juntas elas refundem nada menos que 10 toneladas de material metálico por mês, num total de 120 mil kg de material/ano.
Óleo, baterias, venenos, lubrificantes e solventes, assim como qualquer outro resíduo que possa contaminar o solo precisam ser retirados das peças no local e depois armazenado em local seco e coberto para só então serem vendidos aos centros de fundição.
No rol dos pontos positivos inclui-se o fato de os metais serem 100% recicláveis, diferentes de materiais agregados como ferrugem ou teflon (material antiaderente usado em panelas). Ao contrário do papel, o metal pode ser reciclado infinitas vezes.
Os benefícios da reciclagem de metais vão mais além. Segundo dados do Instituto Nacional das Empresas de Preparação de Sucata Não Ferrosa e de Ferro e Aço – Inesfa – cada tonelada de alumínio reciclado poupa o ambiente com a retirada de 5 toneladas de bauxita.
Ainda segundo dados do Inesfa, quando o aço é produzido inteiramente a partir da sucata, há uma redução de - 85% do ar, além de uma queda de - 76% do consumo de água, eliminando todo esse impacto que seria causado em decorrência da atividade da mineração.
Sucata à deriva esconde riscos ao homem e ao meio ambiente
A pouca atenção dada à sucata em nosso dia a dia encobre uma “assepsia” silenciosa e gigantesca no meio ambiente realizada pelos ferros-velhos.
Os 10 mil quilos de metal retirado pelos coletores na cidade oferecem sérios riscos ao meio ambiente e perigos diretos ao homem se abandonados indiscriminadamente na natureza.
O geógrafo Júnior Euclides da Silva Júnior faz uma lista de perigos que serve de alerta para os órgãos fiscalizadores. Entre eles a contaminação do lençol freático além de não permitir a formação da fauna e da flora.
“A fiscalização ambiental nos ferros-velhos é de extrema importância tendo em vista que eles contribuem para poluição dos lençóis freáticos de modo que este tipo de resíduo possui grande quantidade de fluidos tais como óleo, graxas, combustíveis e ferrugem que, com as chuvas são penetrados no subsolo”, explica.
A poluição pode chegar a inibir a formação de vegetação e a formação da chamada fauna sinantrópica, composta por baratas e roedores.
“A contaminação pode ser tanto no meio físico como água subterrânea, solos e rochas como também no âmbito biológico, pois o local ocupado pelos resíduos não permite a formação da flora e da fauna local possibilitando a formação da fauna sinantrópica como baratas, ratos e insetos”.
Pragas e Aedes Aegypti
Os problemas que podem ser causados pelo ferro-velho começam em seu armazenamento. Se guardado de maneira incorreta, a sucata pode trazer doenças tanto para quem trabalha diretamente com o material como para toda a vizinhança do depósito. Um inseto recorrente é o Aedes Aegypti, mosquito transmissor da dengue e da febre Chikungunya.
De acordo com a Supervisão Geral de Pontos Estratégicos da Secretaria Municipal de Saúde de Maceió (SMS), em 2013 foram contabilizados 326 fotos de dengue em ferros velhos e borracharias, um índice de 7,78%, considerado alto.
Ainda segundo a SMS, os números de 2014 já superam os do ano passado. Em aproximadamente 1000 visitas, foram localizados focos em 10% deles, ou seja, 100 estabelecimentos contaminados.
Assepsia
A orientação da Secretaria Municipal de Proteção ao Meio Ambiente (Sempma), preconiza que um local que trabalhe com sucata precisa, no mínimo, ser coberto e dedetizado a cada seis meses para prevenir que pragas se proliferem. A realidade encontrada, no entanto, é bem diferente.
No bairro do Tabuleiro do Martins, há anos a vizinhança de um ferro-velho que funciona na Avenida Maceió sofrem com constantes ataques de insetos provenientes do coletor de sucatas. Ratos de grande porte, baratas, escorpiões e casos de dengue são apenas alguns dos problemas enfrentados pelos moradores das casas vizinhas ao negócio.
Uma senhora que vive há 15 anos vizinha ao ferro-velho comentou à reportagem do TNH1 que as queixas de multiplicação de pragas no local são recorrentes entre os que vivem próximos ao depósito de sucata. A moradora, que preferiu ter seu nome preservado, contou que em sua casa, anexa ao coletor, aparecem roedores tão grandes que não há armadilhas que possam capturá-los.
“O último rato que vi passando pelo meu quintal era do tamanho de um gato de porte médio, ele cavou um buraco enorme onde minha neta de seis anos enganchou o pé, dias atrás”, relatou a aposentada. “Ficamos apavorados”.
Do outro lado do ferro-velho o maior incômodo são as moscas que, segundo o casal que vive na residência, são hóspedes permanentes. “As varejeiras aparecem de tempos em tempos, em grande quantidade, ao ponto de não conseguirmos fazer uma refeição em paz. Já capturamos escorpiões também”, contaram. “Tivemos alguns casos de dengue na família, como cuidamos de possíveis focos em nosso quintal, sabemos que só pode vir do comércio no vizinho”, denunciaram.
Órgãos municipais são responsáveis pela fiscalização
Após as recorrentes queixas de má conservação do ferro-velho denunciado à reportagem pelos moradores vizinhos, os proprietários cobriram o local, seguindo a recomendação da Fiscalização Preventiva Integrada (FPI), realizada pela Secretaria Municipal de Proteção ao Meio Ambiente (Sempma).
A Sempma fiscaliza os ferros-velhos juntamente com a Secretaria Municipal de Saúde (SMS), Superintendência de Limpeza Urbana de Maceió (Slum) e a Superintendência Municipal de Controle e Convívio Urbano (SMCCU), que costumam fazer visitas sazonais, principalmente no período de chuvas.
Obras de arte nascidas da frieza do metal
Transformando folhas de aço em verdadeiras obras de arte há mais de 10 anos, o artista plástico Freddy Correia mostra a beleza escondida pela aparente “frieza” do metal.
Consciente do caráter ambiental de sua arte, Freddy alerta que a formação cultural interfere na consciência do reaproveitamento de todo tipo de material. “Quanto mais a sociedade investir em educação, mais ela se preocupará em reaproveitar todo tipo de material’.
Freddy Correia brinca dizendo que o aço é o primo rico do ferro. “Sua estrutura é de fácil manutenção e não sofre tanto com as intempéries”, explica.
Além do aço, o artista conta que reaproveita sobras de metais nobres de indústrias parceiras e transforma tudo em obras de grande porte. “Cada peça leva em média uma semana para ficar pronta”, conta.
Curiosidades
01 (uma) lata de alumínio reciclada equivale a economia de energia de um televisor em uso pelo período de três horas.
Cada brasileiro consome em média 54 latinhas por ano, volume bem inferior ao norte-americano, que é de 375.
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