Texto de Fernando Capez, Procurador de Justiça do Ministério Público de São Paulo:
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“O Supremo Tribunal Federal suspendeu o julgamento que discute a descriminalização do porte de drogas para consumo próprio. O relator, ministro Gilmar Mendes, pediu mais tempo para analisar os votos apresentados, com a promessa de liberar o caso para apreciação da corte nos próximos dias.
Depois de estar em vigor há quase 20 anos, sem qualquer pronunciamento jurisdicional acerca de sua constitucionalidade, o artigo 28 da Lei nº 11.343/06 tem sua vigência ameaçada pelo julgamento de eventual inconstitucionalidade. Nesse julgamento, o crime de tráfico de drogas, previsto no artigo 33 da referida lei, não está em pauta e não sofre riscos de desaparecer como infração penal. O delito de posse de pequena quantidade para consumo pessoal, no entanto, precisamente a figura de que trata o artigo 28 em questão, pode deixar de existir como crime. Atualmente, essa conduta, embora seja tipificada penalmente, sofreu o processo de despenalização e não é punida com pena privativa de liberdade. Trata-se de infração de menor potencial ofensivo, de competência dos Juizados Especiais Criminais e punida, no máximo, com advertência verbal, obrigação de frequentar cursos e prestar serviços à comunidade. O processo pode ser evitado por meio de acordo com o Ministério Público (Lei nº 9.099/95, artigo 76) e não gera antecedentes criminais. Desta forma, embora a conduta esteja criminalizada por opção política do legislador, sua punição demasiadamente branda praticamente a equipara a uma violação administrativa.
O caso concreto remete a recurso contra decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o qual manteve a condenação de homem flagrado com 0,3g de maconha. No STF, todavia, a controvérsia está mais ligada à questão da potencialidade do dano à sociedade pela conduta de consumir substância ilícita, a ponto de ser considerada criminosa. Outra questão em debate, refere-se ao limite da interferência estatal na opção do indivíduo em consumir determinada substância, seja lícita ou ilícita, sem ferir os direitos fundamentais da inviolabilidade da intimidade e da vida privada. Preliminarmente, os ministros também se manifestaram sobre a competência do Poder Judiciário para analisar a questão ou se a temática compete apenas ao Congresso Nacional….
Do ponto de vista técnico, há de se fazer algumas observações. O uso de drogas nunca foi considerado crime pela nossa legislação. Nem na antiga Lei nº 6.368/76, nem na Lei nº 11.434/06, o verbo “usar” é considerado elemento do crime. A incriminação do uso de droga violaria o princípio da alteridade ou transcendentalidade, segundo o qual o Direito Penal não pode punir a conduta do agente que só faz mal a si mesmo, somente incriminando as condutas que transcendem a figura do autor para violar ou ameaçar o direito de outrem (alter). O mesmo raciocínio, por exemplo, é aplicado à tentativa de suicídio. A pessoa que tenta extirpar sua própria vida causa dano apenas a si, diferentemente daquele que instiga, induz ou auxilia terceira pessoa a se suicidar.
O texto do artigo 28 não incrimina o uso da droga, referindo-se apenas as condutas de “adquirir, guardar, ter em depósito, transportar, ou trazer consigo” como elementares do crime. Não se pune o uso, em si, mas a detenção da droga para uso futuro, uma vez que legislador, por critérios políticos e dentro de sua competência constitucional, entendeu que existe um perigo social a ser censurado penalmente, resultando do perigo de circulação da droga pela sociedade. Evidentemente, diante da finalidade de consumo pessoal, e não de tráfico, optou por não punir tal comportamento com pena de prisão, ajustando corretamente a reprimenda ao princípio da proporcionalidade…
Como se vê, independentemente do juízo de valor quanto à conveniência ou não da descriminalização do porte de entorpecentes para uso pessoal, na prática, a decisão pouca diferença fará à coletividade, tendo em vista que os usuários de maconha já não sofrem nenhuma pena que os apartem da sociedade, sendo a questão abordada apenas como correção de rumos de política criminal. A título de preservação da privacidade, intimidade e autodeterminação dos corpos, o Poder Judiciário, caso decida pela descriminalização, apenas poupará o usuário de comparecer a audiências ou receber lições dos malefícios da substância que, por decisão pessoal, já consome. Não é essa a questão. O problema principal consiste em o Poder Judiciário invadir competência exclusiva do Poder Legislativo, no caso, o Congresso Nacional…”
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