Texto de Reinaldo Azevedo:
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“Prossegue o morticínio que teve início no sábado com o ataque terrorista do Hamas a civis em Israel. A resposta já brutal — ainda no começo, como não cansa de anunciar Benyamin Netanyahu — tem o objetivo declarado, e esperado, de destruir o Hamas. Ainda que se matem todos os militantes, o grupo vai desaparecer? Bombas, incêndios, fósforo branco e o que mais se imagine ou se crie, sempre em nome da liberdade, destroem pessoas, prédios, paisagens, mas não ideias. Podem, ao contrário, torná-las ainda mais obtusas, absurdas e mortais.
Distante da guerra, hordas de delinquentes se regozijam nas redes sociais. Que importa que celerados tenham executado civis israelenses a esmo, sendo, tudo indica, especialmente cruéis com bebês? “A resistência pode tudo; a culpa é do invasor!” Que importam os corpos queimados das crianças em Gaza e o desastre humanitário em curso? A reação e o direito à autodefesa podem tudo; a culpa é do terror”. Pergunto de novo: ‘Se, numa luta, tudo é permitido, o que não será?’ A morte sempre foi o combustível dos fanáticos, tenham fuzil, míssil, tanque ou apenas um teclado.
O que a milícia islâmica tem a oferecer aos palestinos de qualquer parte? Resposta: a promessa de que o inimigo será exterminado. Se viesse a acontecer e caso isso se desse por suas mãos, a população viveria sob qual regime? Aquele que já vigorava antes do aniquilamento em curso: uma ditadura feroz. E que se note: para os que se querem instrumentos de Deus, o fim do Estado judeu seria apenas uma etapa. É o que vai em seu estatuto de fundação. Ali se explica que o modo de ser ‘nacionalista’ é ser universalista, vale dizer: compreende a mobilização dos muçulmanos de todo o mundo. Quando estiverem no comando, prometem conviver em paz com outras religiões, desde que sob as regras do Islã.
Netanyahu e seus extremistas, não cansa de apontá-lo a imprensa responsável de Israel, avaliou que o Hamas já não oferecia tanto perigo, especialmente com Gaza sob bloqueio, e se dedicou à desmoralização metódica da Autoridade Nacional Palestina (ANP). Adiava-se, pois, sem prazo — ou para nunca, como querem os sectários que dão o tom do governo — a solução dos dois estados. Volto ao estatuto.
O Artigo 7º termina assim:
‘A hora do julgamento não chegará até que os muçulmanos combatam os judeus e terminem por matá-los. E mesmo que os judeus se abriguem por detrás de árvores e pedras, cada árvore e cada pedra gritará: ‘Ó muçulmanos, ó servos de Alá, há um judeu por detrás de mim, venha e mate-o’ – exceto se se tratar da árvore gharqad, porque ela é uma árvore dos judeus.’
Vai acima uma citação de autoria de Muslim ibn al-Hajjaj (815-875) — ou Imã Muslim —, que escreveu um dos ‘Hadths’, que é a compilação de supostas comunicações orais de Maomé. A sua, ‘Sahih (autêntico) Muslim’, é uma das duas mais influentes entre os sunitas. O fragmento acima está no livro 41.
Releiam o trecho e comparem com os desatinos sangrentos do dia 7. Há centenas de passagens pacifistas no Alcorão — e muitas, sim, com apelo à violência, como acontece na Bíblia, cumpre notar. Os arautos do fim dos tempos escolheram a parte de uma compilação que fala na eliminação de um povo; que ensina os muçulmanos a desconfiar até da única árvore — gharqad (‘lício’ em português) — que não delataria o inimigo. Isso é só um delírio do Século IX? Em 2014, o mufti (intérprete do Alcorão) egípcio Ali Gomaa disse numa TV do seu país que os judeus plantam muitos pés de gharqad na Cisjordânia para se esconder dos muçulmanos no Juízo Final.
Por que lembro aqui a essência do pensamento daqueles que tiranizam seu próprio povo em Gaza? Porque nem mesmo a loucura do Hamas, com a qual é impossível negociar — e Netanyahu negociou, destaque-se, sempre para enfraquecer a ANP –, deve nos levar a concluir que o atual governo de Israel não tem responsabilidade nenhuma no que está em curso.
Mais uma vez, remeto-os a uma parte de um artigo do americano Thomas Friedman, um dos mais destacados jornalistas judeus do mundo, no New York Times, com tradução do Estadão. Observo que, antes de chegar ao excerto que destacarei, ele antevê coisas terríveis, especialmente para o povo palestino. Com espírito fatalista, afirma estar ‘100% ao lado de Israel contra o Hamas, porque Israel é um aliado que compartilha muitos valores com os Estados Unidos, enquanto o Hamas e o Irã se opõem ao que os Estados Unidos defendem’.
Mas Friedman, uma estrela do articulismo mundial, não adotou a postura de alguns psicopatas do teclado e das câmeras aqui no Brasil, que sujam de sangue a história da imprensa brasileira ao se negar a emprestar um contexto aos descalabros em curso. Nada tem a ver também com o vomitório de alguns oportunistas, que saem das catacumbas para exaltar a política da morte. Escreve:
“Essa guerra entre Israel e Hamas faz parte de uma escalada de loucura que vem ocorrendo nessa vizinhança, mas que se torna cada vez mais perigosa a cada ano, à medida que as armas ficam maiores, mais baratas e mais letais.
(…)
Mas o que torna esta guerra diferente para mim de qualquer outra guerra anterior é a política interna de Israel. Nos últimos nove meses, um grupo de políticos israelenses de extrema direita e ultraortodoxos liderados por Netanyahu tentou sequestrar a democracia israelense à vista de todos. A direita religiosa-nacionalista-assentada, liderada pelo primeiro-ministro, tentou assumir o controle do judiciário israelense e de outras instituições importantes, eliminando o poder da Suprema Corte de Israel de exercer a revisão judicial. Essa tentativa abriu várias fraturas na sociedade israelense. Israel estava sendo levado de forma imprudente por sua liderança à beira de uma guerra civil por causa de uma fantasia ideológica. Essas fraturas foram vistas pelo Irã, pelo Hamas e pelo Hezbollah e podem ter despertado sua ousadia.’…
Já escrevi e reitero, de olho na lógica dos fatos. Não há como Tel Aviv sair dessa guerra sem a deposição formal do governo de Gaza, ou terá de contabilizar uma derrota depois de muitos milhares de mortos — e boa parte será constituída, como já é, de crianças, mesmo que lembrar o óbvio deixe apopléticos alguns ‘analistas’ sedentos de sangue, para os quais fazê-lo minimizaria a gravidade da execução de crianças judias. É um disparate, um despropósito, uma ignomínia. Às vezes, tão intelectualmente delinquentes como as ‘necromilícias’ e os ‘necropolíticos’, só mesmo os ‘necrocomentaristas’ — são um tanto mais covardes porque a peroração se dá sem risco nenhum. Os que atualmente falam pelo Hamas vão cair. O maior erro que os israelenses podem cometer é não avaliar a que custo o farão; a que economia dos meios recorrerão.
Bombas destroem prédios, pessoas, paisagens, mas não ideias. Que sempre podem sobreviver para matar ainda mais.”
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