Nara Leão era mais que a mocinha frágil de joelho bonitinho, diz nova biografia

Publicado em 24/01/2021, às 08h03
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Por Folhapress

Responsável por biografias saborosas sobre personagens como o jornalista Tarso de Castro, que fundou o Pasquim, ou o politizado jogador Sócrates, o escritor Tom Cardoso pensou em fazer um perfil de Raul Seixas. Mas foi desencorajado pelo colega jornalista Tarik de Souza.

Por isso, o prefácio de "Ninguém Pode com Nara Leão", que chega agora às livrarias, foi escrito por Souza. "Ele me disse que ninguém aguentava mais falar de Raul Seixas e sugeriu a Nara", conta Cardoso, que lembra a definição do amigo para a cantora. "Uma mulher porreta! Falam muito pouco dela hoje, mas teve participação em vários movimentos musicais."

Naquele momento, há mais de três anos, Cardoso tinha uma visão estereotipada da figura dela. "A cantora de bossa nova, a mocinha que ofereceu o apartamento da família para que a turma se reunisse para criar o movimento. Ela ali no meio, joelhinho bonitinho, mulher frágil e tímida. Esse era o retrato. Mas fui descobrindo uma mulher que era muito mais do que isso."

O livro mostra Nara Leão como uma mulher naturalmente de vanguarda. Seus posicionamentos e direções artísticas não eram planejados, mas guiados por uma inquietação que a levou a fazer exatamente aquilo que queria, sem a preocupação de conseguir sucesso ou ser fiel a um movimento.

O trabalho de Cardoso não se propõe uma biografia completa. Na verdade, é um perfil narrativo e interpretativo dos episódios que levaram a cantora a sair de sua timidez e criar uma casca artística que produziu uma artista sem amarras.

Ao reproduzir os caminhos de Nara Leão, o livro fala muito da transição do samba canção para a bossa nova e, mais adiante, para a tropicália. Nessa trajetória, ela se envolve com o pessoal do cinema novo e com os intelectuais de esquerda do Centro Popular de Cultura, o CPC, foco de resistência criado dentro da União Nacional dos Estudantes.

As pesquisas do autor só reforçam o equívoco que muitos cometem ao atribuir uma possível saída de Nara Leão da bossa nova ao rompimento amoroso com Ronaldo Bôscoli, que a traiu com a cantora Maysa em 1961. Na verdade, o relacionamento dos dois já estava ruindo e ela procurava novos rumos musicais.
Em seu primeiro disco, "Nara", de 1964, ela gravou samba do morro, mas, segundo Cardoso, continua sendo um disco de bossa nova. "É uma leitura dela que mistura as duas coisas. E nos shows ela seguiu cantando coisas de Bôscoli, Roberto Menescal e Tom Jobim."

O livro abre com um dos episódios mais notórios da vida de Nara Leão, que era sua grande desavença com Elis Regina. Elas se odiavam e não escondiam isso em entrevistas agressivas. Cardoso relata as brigas por destaque dentro da TV Record nos anos 1960, emissora em que ambas eram contratadas.

"Elis invejava essa liberdade da Nara, seu jeito low profile, sem estar preocupada em fazer sucesso. Ela já nasceu ali no meio da música, convivia com o pessoal da bossa nova desde os 15 anos. Elis vinha do Sul, tinha que batalhar seu espaço, sofria outra exigência."

"Nara falou mal da bossa nova, de Tom e de Vinicius, mas se arrependeu, terminou a vida regravando bossa nova, nos anos 1980", diz Cardoso. "No comportamento, ela era muito na dela, tranquila, mas nas entrevistas parecia uma doida. Era muito contundente. Elis tinha um comportamento colérico, mas era contida nas entrevistas."

Ver a vida de Nara Leão ao longo dos anos 1960 é perceber um processo de empoderamento feminino. "Entre os machos alfa que frequentavam o apartamento de sua família, ela era tratada como uma bonequinha, não a deixavam cantar. Mas então ela se aproximou da turma do cinema novo e do CPC, onde teve seu lugar", conta Cardoso.

A conscientização política de Nara Leão se acelerou. Ela foi gravar sambas de temática social. Seu segundo álbum, "Opinião de Nara", de 1964, inspirou diretamente o maior espetáculo musical da época, "Opinião", combatido pelo regime militar.

"Muita gente acha que o disco dela veio depois do musical, mas é o contrário", diz o autor. "Uma menina da zonal sul carioca inspirando os caras do CPC a ponto de dar nome ao espetáculo! É preciso fazer justiça a uma personagem dessas."

Em 1966, ela deu entrevista ao Diário de Notícias dizendo que o Exército brasileiro não servia para nada e deveria ser extinto. "A declaração gerou toda uma movimentação da classe artística para tentar proteger a Nara de retaliações", afirma Cardoso. Depois, já casada com o cineasta Cacá Diegues, pai de seus dois filhos, eles deixaram o país para uma temporada na Itália, fugindo de uma prisão que não tardaria.

O biógrafo destaca que a posição desafiadora de Nara era mais artística e intelectual do que comportamental. "Ela não era Leila Diniz, que ia grávida à praia. Nara não usava drogas. Sua transgressão era musical. Sua inquietação fez com que nunca gravasse exatamente o disco que todos estavam esperando, não respeitava fórmulas."

O livro segue também o período em que ela decidiu dar mais tempo aos filhos, ficou afastada dos shows e passou a cursar psicologia. Nos anos 1980, teve dores de cabeça, desmaios e confusão mental, em episódios cada vez mais recorrentes. Tinha um tumor no cérebro.

Com sua morte em 1989, aos 47 anos, Nara deixou um legado de integridade artística que Tom Cardoso destaca. "Ela acabou tendo controle total sobre a carreira, gravou só o que quis, sem interferência de executivos de gravadora ou produtores. Quando lançou um disco inteiro com canções de Roberto e Erasmo, antes de muita gente fazer o mesmo, ela tomou pau de todo mundo."

Definitivamente, a vida de Nara Leão se confunde com a MPB.

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