Contextualizando

“Não existem soluções fáceis para problemas complexos” – lições a se extrair da tragédia que atinge o povo gaúcho

Em 13 de Maio de 2024 às 18:00
Sem uma mudança de mentalidade urgente, tudo indica que tragédias como as enchentes que castigam o Rio Grande do Sul se repitam mais cedo do que se imagina.
Nada será como antes para o povo gaúcho, como não tem sido para ocorrências semelhantes em outras regiões do Brasil.
É o que explica o empresário Nuno Vasconcellos, em artigo no portal IG:

“… Em fevereiro de 2022, para citar apenas um exemplo, um temporal ‘atípico’, ‘inesperado’ e com chuvas superiores à ‘média histórica’ do lugar onde caiu — como costumam ser descritas as ocorrências dessa natureza — caiu sobre Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro. Enquanto as famílias ainda choravam os mortos, que chegaram a 235 naquela ocasião, houve promessas de obras emergenciais destinadas a resolver de uma vez por todas o problema dos deslizamentos de encostas típicos da região.

No calor da comoção, tanto o governo federal quanto o estadual prometeram apressar a liberação de recursos para 192 obras, a grande maioria destinada à contenção de encostas. Somadas, elas exigiriam pouco mais de R$ 100 milhões. Pois bem. No caso de Petrópolis, dois anos depois das tragédias, 26 das obras apresentadas inicialmente como essenciais para salvar vidas e impedir que a infraestrutura da cidade voltasse a ser destruída pelo temporal seguinte sequer tinham passado pelo processo de licitação. E no Sul, como será?

Desastres como o que se abateu agora sobre o Rio Grande do Sul acontecem desde que o mundo é mundo. Desde o dia 27 de abril, quando as águas começaram a desabar com violência sobre a região de Porto Alegre e outros pontos do estado, muita gente tem comparado o acontecimento de agora com as cheias históricas de 1941. Naquele ano, o nível do Guaíba ficou 4,76m acima do leito (sendo que, pelas medições locais, qualquer nível acima de 3 metros já é considerado uma inundação). Só para efeito de registro, desta vez as águas chegaram a alcançar 5,33m no domingo passado — mas, em casos como esses, meio metro a mais ou meio metro a menos não tornariam a situação menos dramática.

O que interessa, nesse caso, é que as mudanças climáticas têm tornado esse tipo de fenômeno cada vez mais frequente e que, no ritmo que elas têm acontecido, não haverá uma espera de outros 83 anos (que é o tempo que separa 1941 de 2024) para que uma nova enchente de proporções diluvianas cubra a região. E já que as mudanças capazes de reduzir o aquecimento global, mesmo que sejam conduzidas com afinco por todos os que têm responsabilidades sobre o clima, ainda demorará décadas para produzir efeitos positivos, a única solução é aprender a conviver com essas ocorrências e tomar as providências para que os fenômenos climáticos não se transformem em tragédias de proporções gigantescas.

À espera da tragédia

Isso mesmo. Embora não seja desejável, é possível se preparar para lidar com fenômenos imprevisíveis. Mais do que os ciclones extratropicais, os terremotos (que nada têm a ver com as mudanças climáticas, é bom deixar claro) chegam sem o menor aviso. Em 1999, um tremor com mais de sete pontos na escala deixou mais de dois mil mortos na ilha chinesa de Taiwan. O governo local tomou providências. Adequou as construções a esse tipo de fenômeno, alterou a localização de aglomerados populacionais e tomou outras iniciativas que, nos abalos seguintes, ajudaram a salvar milhares de vidas.

A prova do acerto do que foi feito veio em 2016, quando um novo terremoto de grandes proporções sacudiu a ilha. O número de mortos foi de mais ou menos cem pessoas. Em abril deste ano, um novo terremoto, um pouco mais forte do que o de 1999, causou danos consideráveis em extensas áreas urbanas de Taiwan. O número de mortos desta vez não alcançou 17. Os escombros de edifícios que desabaram foram removidos em questão de dias e, em seu lugar, serão erguidas novas edificações, mais preparadas para resistir aos abalos. Isso só aconteceu porque, além do acerto do trabalho de engenharia, os moradores foram preparados para reagir a terremotos. Pelo que se notou no calor dos acontecimentos, cada pessoa por ali sabia exatamente o que fazer assim que a terra parou de tremer.

De volta ao Brasil, o Rio Grande do Sul está diante da possibilidade de fazer o mesmo — e se preparar para eventos que, se não podem ser evitados, devem ser devidamente respeitados. Guardadas as diferenças que existem entre os efeitos das enchentes e dos terremotos, é perfeitamente possível — ainda mais agora que ela terá que ser reconstruída praticamente do zero — adequar a infraestrutura local a esse tipo de ocorrência.

Também é possível reduzir o impacto das tragédias e zelar para que, ainda que não seja possível salvar tudo, pelo menos evitar as cenas de pessoas arrastadas pelas enxurradas ou de corpos afogados na lama. E, também, o relato desesperado de quem viu tudo o que conseguiu construir ao longo da vida arrastado por uma correnteza que chegou de repente.

É preciso salvar vidas e, na medida do possível, reduzir os danos materiais causados por um desastre como esse. Não se trata, naturalmente, de virar as vocações do estado de pernas para o ar nem de simplesmente proibir o uso das terras mais baixas para a agricultura, a pecuária e outras formas de exploração econômica.

O Rio Grande do Sul é um grande produtor agrícola. Na verdade, é o principal responsável por fazer do Brasil o maior produtor de arroz do ocidente. Pelo calendário agrícola normal, toda a safra já deveria ter sido colhida nesta época do ano. Mas os efeitos do fenômeno El Niño obrigaram atraso no plantio e uma parte ainda não tinha sido colhida quando as chuvas desabaram. Isso certamente causará aumento dos preços dos grãos e terá impacto sobre a inflação dos alimentos. Mas, convenhamos, esse é o tipo do problema que, sem querer reduzir sua importância, chega a parecer pequeno diante de tudo o que aconteceu.

É preciso olhar para a tragédia e tirar dela as lições possíveis. O Brasil precisa olhar com mais seriedade para os fenômenos climáticos e fazer além do que estiver a seu alcance para reduzir seus efeitos. Precisa, também, parar de ficar jogando nas costas do adversário político doméstico a culpa por tudo e entender que um problema desse tipo exige uma solução global, com a participação de gente do mundo inteiro e, dentro de casa, da esquerda, da direita, do centro ou de qualquer outra posição.

O Brasil precisa se adequar às boas normas ambientais e exigir que os países industrializados sigam o mesmo caminho. Precisa, enfim, aumentar seus esforços pela redução dos gases causadores do efeito estufa e do aquecimento global. Precisa de tudo isso. Mas, acima de tudo, precisa deixar de perder tempo com discussões estéreis e entender que não existem soluções fáceis para problemas complexos. Um problema como o do Rio Grande do Sul, é bom insistir, precisa ser enfrentado por todos. A solução do problema torna obrigatória uma mudança de mentalidade que, enquanto não vier, apenas prolongará o sofrimento das pessoas.”

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