Metade dos casos de demência no Brasil podem ser evitados; conheça os fatores de risco

Publicado em 14/01/2025, às 08h49
Foto: Reprodução/Freepik
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Por BBC News

Primeiro, a notícia ruim: a América Latina já é a região mais afetada pela demência no mundo, e a situação tende ficar ainda pior nas próximas décadas.

Depois, a boa: mais da metade desses casos podem ser evitados se 12 fatores que causam a doença forem devidamente controlados.

Essas são algumas das principais conclusões de uma pesquisa liderada pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) em parceria com outras oito instituições, publicada em outubro de 2024 no periódico acadêmico The Lancet Global Health.

Os cientistas levantaram dados e indicadores de saúde de sete países da região — Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Honduras, México e Peru — e viram como cada um deles se saía em relação a 12 fatores modificáveis que contribuem para a perda da memória e do raciocínio.

A lista de fatores por trás da demência inclui nível de educação, perda auditiva, hipertensão, obesidade, tabagismo, depressão, isolamento social, sedentarismo, diabetes, consumo excessivo de álcool, poluição atmosférica e traumas na cabeça (entenda a seguir como eles estão relacionados ao desenvolvimento da doença).

Além de calcular uma média para toda a América Latina, o estudo também avaliou a situação específica de cada país e o peso que os 12 elementos possuem nesses lugares.

Para ter ideia, a educação e a hipertensão são os dois fatores mais impactantes no Brasil, enquanto a depressão e a obesidade se sobressaem no México e o tabagismo é o principal problema em Honduras.

Os autores esperam que os achados sirvam de orientação para as pessoas e principalmente ajudem governos a criar políticas públicas customizadas, de acordo com a situação de cada local.

Como o estudo foi feito

As estatísticas usadas na análise foram retiradas de grandes trabalhos epidemiológicos realizados nesses países durante a última década.

Esses levantamentos reúnem dados relacionados à saúde de uma amostra representativa da população, que supera as dezenas ou até centenas de milhares de pessoas.

No caso do México, as estatísticas englobam mais de 107 mil indivíduos acima de 18 anos. Os números também são elevados nos casos de Honduras (89 mil), Peru (81 mil) e Argentina (29 mil).

"E, mesmo no caso do Brasil, cujo estudo traz dados de 9,4 mil pessoas, trata-se de uma amostra representativa da população do país", explica a bióloga Regina Silva Paradela, pesquisadora da FMUSP e uma das autoras do estudo recém-publicado.

Segundo ela, o principal desafio foi padronizar e harmonizar todas essas estatísticas, para que elas fossem submetidas aos mesmos critérios e definições sobre o que significa, por exemplo, ter hipertensão ou fazer um consumo excessivo de álcool.

Superada essa barreira, os cientistas puderam calcular o impacto de cada um daqueles 12 elementos que provocam a demência.

"Precisamos também levar em conta a comunalidade, pois alguns dos fatores tendem a se agrupar e estão relacionados. A obesidade está associada à hipertensão, ao diabetes, ao sedentarismo…", detalha a médica Claudia Kimie Suemoto, professora do Departamento de Geriatria da FMUSP e outra autora do trabalho.

A partir dessa análise, que isolou a contribuição de cada um dos elementos, os cientistas puderam concluir que 54% dos casos de demência na América Latina podem ser atribuídos aos 12 fatores citados anteriormente.

Em ordem decrescente, aparecem obesidade (7%), sedentarismo (7%), depressão (5%), tabagismo (4%), hipertensão (4%), traumas na cabeça (4%), educação (3%), isolamento social (3%), poluição atmosférica (3%), diabetes (3%), perda auditiva (1%) e consumo de álcool (1%).

Em outras pesquisas do tipo, que avaliaram partes diferentes do mundo (especialmente os países mais ricos), essa porcentagem de casos de demência ligada a esses 12 fatores fica em 40%.

Mas o que explica a diferença de 14 pontos percentuais a mais na América Latina?

"Basicamente, grande parte dessa diferença tem a ver com a prevalência mais elevada de alguns dos fatores na nossa região", responde Suemoto.

"Sabemos, por exemplo, que o baixo nível de educação é mais comum por aqui, assim como os fatores de risco cardiovasculares, caso de hipertensão, diabetes e obesidade", complementa ela.

Para a geriatra, essa informação representa ao mesmo tempo uma grande ameaça e uma enorme oportunidade.

Afinal, a América Latina já tem a maior prevalência de demência: 8,5% da população acima de 60 anos do continente sofre com essa condição.

As projeções apontam que essa taxa vai subir para 19,3% até 2050 — isso significa que praticamente um a cada cinco indivíduos mais velhos sofrerão com a perda de memória e as dificuldades de raciocínio.

"Ou seja, estamos falando de uma possível redução de 54% nos casos em relação a uma quantidade de pessoas muito maior, com um aumento projetado para o futuro", compara Suemoto.

Enquanto isso, nos países mais ricos, a possível diminuição de 40% nos casos pode acontecer sobre uma base que já é menor e tende a crescer menos nas próximas décadas.

"Na prática, isso significa que as políticas públicas contra a demência, se bem aplicadas, podem fazer uma diferença ainda maior na América Latina", complementa a médica.

A obesidade é o principal fator por trás da demência na América Latina

Diferenças entre os países

Como citado anteriormente, a pesquisa da FMUSP também revelou como os impactos entre os diferentes "gatilhos" da demência variam em cada país da América Latina.

No caso do Brasil, a ordem dos doze fatores por trás da demência é: educação (8%), hipertensão (8%), perda auditiva (7%), obesidade (6%), depressão (4%), sedentarismo (4%), poluição atmosférica (3%), diabetes (3%), traumas na cabeça (3%), tabagismo (2%), isolamento social (0%) e consumo de álcool (0%).

No total, 48% dos casos de demência no Brasil podem ser prevenidos se esses elementos fossem devidamente controlados.

A educação também aparece como um grande problema na Bolívia (11%) e em Honduras (7%), mas tem um impacto bem menor em locais como México (2%), Argentina (2%), Chile (1%) e Peru (1%).

"Isso tem a ver com o sistema educacional de cada lugar. Na Argentina, existe uma forte política de educação de qualidade para todos", exemplifica Suemoto.

Em nações como Chile e Argentina, questões como obesidade, sedentarismo, depressão e isolamento social se sobressaíram mais.

"A ideia é que cada país possa usar as informações desses gráficos e pensar em como aplicá-las na prática. Claro que criar políticas para todos os 12 fatores é difícil, mas há a possibilidade de focar nas questões mais significativas de cada lugar", sugere Suemoto.

Paradela destaca o impacto reduzido do tabaco em toda a região — com exceção de Honduras e Peru, onde o cigarro responde por 12% e 11%, respectivamente, o papel desse hábito na demência é menor nos demais países e fica entre 5% na Argentina e 2% no Brasil.

"Isso é fruto de políticas públicas que restringiram o tabagismo na maioria dos países latino-americanos durante as últimas décadas", aponta Paradela.

Nesse período, foram criadas leis e iniciativas para restringir o fumo em lugares fechados, aumentar os impostos sobre a indústria do tabaco, coibir a propaganda desses produtos, fazer campanhas de conscientização e oferecer tratamentos contra a dependência à nicotina.

Em países como o Brasil, essas medidas fizeram com que a porcentagem de fumantes caísse de 35% nos anos 1980 para menos de 15% em anos recentes.

Os gatilhos da demência

O médico Marco Túlio Cintra, presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG), que não esteve envolvido com o estudo da FMUSP, explica que a demência é uma condição marcada pela "perda de funcionalidade".

"O idoso que não sai de casa sozinho, não controla mais as próprias finanças, não consegue tomar medicamento sem ajuda, não faz as tarefas dentro de casa, ou seja, se torna cada vez mais dependente, não está diante de um processo normal do envelhecimento", contextualiza o geriatra, que também é professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

"Se essa perda de funcionalidade vem associada a esquecimentos significativos, especialmente de episódios recentes, estamos diante de um quadro de demência", continua ele.

Cintra destaca que atualmente no Brasil até 80% dos casos de demência são diagnosticados em fases mais avançadas.

"Essas pessoas são privadas de um tratamento precoce e cuidados que poderiam fazer a diferença", lamenta ele.

Mas qual a relação entre os 12 gatilhos e a perda de memória e capacidade cognitiva? Qual o mecanismo de ação por trás desses fenômenos?

Comecemos pela educação, o fator mais importante no contexto brasileiro. Ao estudarmos e desafiarmos a mente, nós fortalecemos e criamos novas conexões entre os neurônios.

Ao longo dos anos, isso cria o que especialistas chamam de reserva cognitiva.

Ela funciona como uma "poupança cerebral", ou seja, caso o sistema nervoso comece a se deteriorar — e essas sinapses entrem em colapso —, ainda existem outras conexões em funcionamento para garantir um "acesso" ao raciocínio e às lembranças.

"Vamos pegar como exemplo dois indivíduos que apresentam um perfil genético similar, que propicia o aparecimento da demência. Aquele que estudou menos e, portanto, tem uma reserva cognitiva menor, vai ultrapassar o limiar da doença com mais rapidez e apresentará sintomas de forma precoce em relação àquele que teve mais anos de aprendizado", compara Cintra.

Aliás, a formação dessa poupança cerebral é mais intensa na infância e na adolescência — o que significa que a prevenção da demência começa a partir do nascimento.

No entanto, o aprendizado é importante em todas as fases da vida — ler, conhecer um novo idioma, fazer cursos e desafiar o intelecto permitem criar e cultivar a tal da reserva cognitiva.

"E precisamos lembrar que o acesso à educação no Brasil foi tardio. Boa parte dos idosos de hoje estudaram numa época em que o ensino obrigatório era de apenas quatro anos", destaca Cintra.

Seguindo a lista, aparecem os fatores ligados ao estilo de vida e às doenças crônicas: hipertensão, diabetes, obesidade, sedentarismo, tabagismo, consumo de álcool e poluição atmosférica.

Em linhas gerais, a questão aqui está relacionada aos vasos sanguíneos.

De diferentes maneiras, todos esses elementos machucam veias e artérias. Com o passar do tempo, esses tubos do sistema circulatório entram em colapso — e deixam de levar oxigênio e nutrientes para diferentes partes do corpo.

Agora, imagina o que acontece no cérebro: o fechamento de pequenos vasos sanguíneos provoca aos poucos a morte de neurônios.

A questão é que esse quadro pode dar sintomas claros, como no caso de um acidente vascular cerebral (AVC), mas muitas vezes é sutil e passa despercebido.

Ao longo do tempo, isso compromete diversas funções da mente, como a memória e o raciocínio — tanto é que a demência vascular (causada por problemas na chegada de sangue ao cérebro) é um dos tipos mais comuns da doença, ao lado do Alzheimer.

Além de lesar os vasos sanguíneos, alguns dos fatores citados acima também podem ter um efeito direto nas células cerebrais, como é o caso do consumo de álcool e da poluição.

Na lista, também chama a atenção a importância da perda auditiva, que responde por 7% dos casos de demência no Brasil.

"Podemos pensar no cérebro como um computador. Ele depende de estímulos do ambiente para funcionar, e a audição é um dos meios mais importantes para isso", ensina Suemoto.

"A pessoa que não ouve direito fica mais quieta, deixa de falar com os outros, se afasta e, por consequência, tem menos estímulos cognitivos", observa a geriatra.

"Esses indivíduos são privados dos sons que fazem a vida, como a folha que cai no chão, o canto dos pássaros, a roda do carro deslizando no asfalto…", complementa Cintra.

E, com o passar do tempo, isso gera um declínio cognitivo e desemboca numa demência.

Para fechar, há os fatores ligados à saúde mental, como o isolamento social e a depressão.

Cintra explica que esses quadros provocam a liberação de substâncias inflamatórias no cérebro que, ao longo do tempo, aumentam o risco de demência.

"Além disso, a pessoa que vive sozinha tem menos contato social, costuma se alimentar pior, faz pouca atividade física…", pontua Cintra.

Como melhorar esse cenário

Suemoto argumenta que a prevenção de casos de demência passa necessariamente pela criação de políticas públicas.

"Os estudos mostram que mudanças individuais são pouco efetivas. Para reduzir o risco, precisamos alterar o ambiente, para que todos esses fatores tenham um melhor controle", diz ela.

Ou seja: não basta apenas pedir para que a pessoa emagreça ou controle a pressão arterial. É necessário aprimorar a estrutura das cidades e dos sistemas de saúde para garantir que todos tenham acesso a lugares para praticar atividade física, possam fazer um acompanhamento de saúde, tenham condições de comprar alimentos saudáveis, recebam os remédios necessários, e assim por diante.

"Eu moro em Belo Horizonte e vejo os problemas de mobilidade todos os dias. Muitos idosos não têm uma atividade de lazer perto de onde moram e só saem de casa para ir ao médico quando é extremamente necessário", ilustra ele.

"Precisamos investir no bem-estar e na saúde da população agora para evitar uma série de problemas no futuro", acredita ele.

Suemoto destaca que a Organização Mundial da Saúde pediu em 2015 que todos os países criassem planos para prevenir e lidar com a demência.

No Brasil, esse debate começou a acontecer em 2023 e surgem agora as primeiras iniciativas para lidar com essa demanda.

Em junho de 2024, o Governo Federal sancionou uma lei que cria a "Política Nacional de Cuidado Integral às Pessoas com Doença de Alzheimer e Outras Demências".

Também está previsto para os próximos meses a publicação de uma cartilha do Ministério da Saúde para educar a população sobre como se proteger contra a demência, que foca justamente na lista de fatores citados ao longo da reportagem.

Suemoto vê com bons olhos esses primeiros passos, mas entende que há muito trabalho pela frente.

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