Vai ficar ainda mais lindo de ver o bloco afro Ilê Aiyê subindo a Ladeira do Curuzu, na Liberdade. A ordem de serviço para o início das obras de requalificação da via foi assinada nesta terça-feira (6) pelo prefeito ACM Neto, em cerimônia na localidade, perto da unidade de saúde que leva o nome de Mãe Hilda, ialorixá do terreiro Ilê Axé Jitolu, falecida em 2009, e que se tornou símbolo da luta contra o preconceito.
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Com investimento de R$ 6,8 milhões e projeto elaborado pela Fundação Mário Leal Ferreira (FMLF) e pela Sotero Arquitetos, com a participação da Secretaria Municipal de Desenvolvimento e Urbanismo (Sedur), as obras terão, a princípio, duração de nove meses. O tempo pode ser reduzido para sete meses, a depender das condições climáticas e do fluxo dos trabalhos. O Carnaval de um dos mais conhecidos blocos afro da cidade não será prejudicado, assegurou o vice-prefeito e secretário de Infraestrutura e Obras Públicas, Bruno Reis, presente no ato.
Será reformado o trecho de 1,1 km, que vai desde a Avenida General San Martin à Estrada da Liberdade. “Não é a coisa mais linda de se ver? O Ilê e o Curuzu nos representa muito bem, é a tradição do nosso povo, um símbolo de luta. Essa obra vai elevar e dar um valor muito maior à comunidade”, disse o motorista e líder comunitário, Jorge Galo, 56 anos.
“Eu tenho certeza de que todos da comunidade recebem essa obra com muita alegria, muito entusiasmo, pelo fato de ser algo bastante desejado há muito tempo. E já posso imaginar o carnaval do ano que vem, ver o bloco saindo, com o bairro completamente requalificado, vai ser muito lindo, uma coisa de arrepiar”, completou Jorge.
O prefeito reforçou que será feita mais que uma requalificação urbanística. "Não vamos mudar uma calçada, colocar somente o piso intertravado ou implantar equipamentos infantis e de descanso. O conceito é muito mais amplo. Vamos fazer uma obra que vai transformar o Curuzu em algo muito maior. A força da nossa cultura, das nossas tradições, da nossa história, da nossa música, das nossas raízes africanas, a representatividade que tem esse bairro, eu diria que esse é o coração da negritude, da cidade mais negra das Américas”, disse Neto na solenidade.
Ele garantiu ainda que o Curuzu, em breve, se tornará um grande corredor cultural e receberá a visitação de pessoas do mundo inteiro. “Isso tudo vai ser transformado num grande corredor cultural que vai, antes de mais nada, atender as expectativas da comunidade que ajudaram a construir o projeto e vai ser um grande lugar de visitação do país e do mundo inteiro”, completou.
Reunião com moradores
A arquiteta e urbanista Tânia Scofield, presidente da FMLF, destacou a participação da comunidade na elaboração do projeto. “Foi construído conjuntamente com os moradores do Curuzu. É um bairro que tem um forte apelo cultural, características muito próprias. Fizemos cerca de cinco oficinas para discutir o projeto com a comunidade. Pensamos em valorizar a cultura do bairro e o resultado foi muito bom”, disse Tânia. O objetivo da intervenção é promover melhorias urbanísticas e de mobilidade, além de valorizar a história e a cultura do Curuzu e de seus mais de 20 mil habitantes.
A nova pavimentação do piso intertravado será nas cores amarelo, natural (cinza) e grafite, fazendo alusão às cores do Ilê e do Curuzu; o concreto lavado pigmentado de vermelho para as calçadas e granito vermelho, que será utilizado como guia de meio-fio. As tonalidades combinarão com a fachada da Senzala do Barro Preto, sede do bloco, que tornou a rua tão famosa mundialmente, e da fantasia carnavalesca do bloco nascido na primeira metade da década de 1970.
O projeto prevê a instalação de marcos de acesso ao Curuzu, identificando e valorizando a localidade, um na Avenida General San Martin e outro na Estrada da Liberdade. Além disso, serão implantados parque infantil, espaços de convivência e novo paisagismo e mobiliário urbano. Entre os itens de mobiliário urbano que serão colocados estão lixeiras, floreiras, conjunto de mesas e bancos e área de jogos de tabuleiro. Também estão previstas rampas acessíveis nas entradas das duas avenidas, além de uma nova escadaria para a Ladeira do Curuzu e uma mureta em alvenaria com corrimão para a proteção e conforto do pedestre durante a subida.
Toda a fiação das empresas de telecomunicação e parte da rede de energia da Coelba serão subterrâneas, melhorando o aspecto visual para quem trafega pela rua ou mora no local. A iluminação passará a ser em LED, mais potente e econômica, e as faixas de pedestre serão elevadas, para maior segurança. A escadaria da ladeira do Curuzu também será requalificada, com o uso de vermelho natural. Já o estacionamento ao longo da via será ordenado.
As intervenções serão de responsabilidade da empresa Construtora Baiana de Saneamento (CBS), que venceu a licitação, e contará com o acompanhamento da Secretaria Municipal de Infraestrutura e Obras Públicas (Seinfra).
Por fim, a obra terá também o assentamento de tubulação em Polietileno de Alta Densidade (PEAD), a instalação de caixas de passagem e de poços de visita. Em todo o trecho requalificado o paisagismo será feito com o plantio de espécies de pequeno e grande porte.
Homenagem
O projeto traz ainda a implantação de um busto, próximo à Unidade de Emergência (UE) Mãe Hilda, em homenagem a Apolônio de Jesus, um dos fundadores do bloco Ilê Aiyê. Apolônio faleceu em 1992, aos 40 anos, após problemas de saúde. Além de fundar o Ilê e mais outras duas agremiações afro, Apolônio era técnico em manutenção, formado pela Escola Técnica da Bahia (Eteba), além de ter sido um entusiasta da cultura e do turismo, dono de bar e promotor de excursões para as praias de Salvador.
O busto foi um pedido feito pela comunidade do Curuzu, nas reuniões com as entidades, para homenagear o ex-morador ilustre do bairro.
De acordo com a irmã de Apolônio, a aposentada Marinalva Souza de Jesus, 63, a homenagem é justa por tudo o que o irmão fez pela comunidade em vida. Segundo Marinalva, a ideia de criar o bloco surgiu quando o irmão teve o pedido rejeitado para entrar num antigo bloco de Carnaval, que na época era destinado apenas para brancos. A partir daí, o Ilê Aiyê foi fundado.
“Acho uma lembrança justa, algo impactante mesmo. Estou satisfeita por lembrarem do meu irmão. Pois quando ele decidiu criar o bloco, que mudou a cara e a história do Curuzu, foi aqui nesse beco que tudo começou, onde ele chamou Vovô e disse: 'vamos criar um bloco para nós negros'”, contou.
Também da família, a aposentada e prima de Apolônio, Jandira Maria Lopes, 70, moradora do Curuzu há 58 anos, contou sobre a relação dela com a comunidade e o impacto que a requalificação trará para a região.
“É um projeto grandioso que vai ser muito importante para a Liberdade toda. Temos uma identificação muito forte com a comunidade, moramos aqui desde crianças. Meu primo lutou muito por esse reconhecimento do Curuzu como um local de extrema importância para Salvador. Ele ajudava muitas pessoas, não é à toa que está recebendo essa homenagem”, disse.
Ilê Aiyê
Antônio Carlos dos Santos, o Vovô do Ilê, acredita que com a intervenção na Rua do Curuzu, tanto o bloco afro quanto a comunidade num todo será beneficiada. Vovô lembrou também da sua relação de amizade com Apolônio, com quem fundou o Ilê.
“Os benefícios serão tanto para o Ilê quanto para todos os moradores. A colocação do busto em homenagem a Apolônio será um grande feito, uma lembrança justa. Ele (Apolônio) era uma figura muito querida pela comunidade, tínhamos uma relação muito boa e essa homenagem é mais do que justa, um orgulho para todos nós. Não tem como falar no Ilê e não falar dele. Nós tivemos várias reuniões com as equipes da prefeitura para chegar a um consenso sobre esse projeto, que agradou a todos”, garantiu.
O Curuzu
De acordo com o historiador do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB), Jaime Nascimento, a comunidade do Curuzu consiste num aglomerado de casas que ligam a Avenida San Martin à Estrada da Liberdade. Ao longo dos anos, a Rua do Curuzu passou por um processo de transformação em bairro, mas ainda não foi constituído pela prefeitura. O desenvolvimento principal da localidade, destaca ele, está ligado à criação do bloco Ilê Aiyê.
“Tanto o Curuzu quanto o Ilê se desenvolveram um ao lado do outo. Ambos tiveram projeção de crescimento desde os primeiros anos de fundação do bloco, a partir de 1975. Logo após essa criação, a rua começou a ser notada e as pessoas começaram a sobreviver em função disso. Passaram a surgir pessoas que trabalham com a cultura negra, com trança de cabelos, turbantes e roupas ligadas a questão religiosa. A Liberdade tem a negritude em sua história, e isso se deu de 100 anos para cá”, contou.
Ao falar da sua relação de identificação com Curuzu e com a Liberdade, a pedagoga Valdiria Lopes afirmou que todos os moradores deveriam se sentir líderes comunitários, seja direta ou indiretamente e ajudarem nas
“Todo morador é líder do lugar que ele mora e deveriam fazer a diferença sempre. A sua identidade vai além do seu corpo, temos que lembrar sempre disso. A Liberdade é um dos bairros mais negros fora da África, que possui muita referência da cultura negra. Essa homenagem ao Apolônio é nossa, foi um pedido nosso, ele merecia muito essa lembrança. Pois o Ilê nos lembra ele, que e sempre será uma referência”, disse.
Já a servidora pública aposentada, Valmiria dos Anjos, 66, que mora desde a infância na Rua do Curuzu, acredita que a requalificação trará uma mudança para a comunidade.
“Eu espero mesmo que como estão anunciando hoje, eles entreguem a obra no prazo e acabem com o transtorno aqui, para elevar a autoestima do bairro. Achei justa a homenagem, o Apolônio ajudava muita gente, ele merece essa lembrança”, contou.
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