Um filme com Leandro Hassum na Netflix virou a nova bola da vez na discussão sobre os limites do humor. "Amor Sem Medida", em que o comediante faz o papel de um homem de baixa estatura que enfrenta dificuldades ao se relacionar com uma mulher mais alta, vem sendo acusado de estimular e promover capacitismo -discriminação contra pessoas deficientes- e o chamado "crip face", que é quando um ator sem deficiência faz o papel de alguém deficiente.
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É fato que o showbusiness nunca deu bons exemplos no retrato de pessoas com nanismo. Associadas com frequência a humor, misticismo e entretenimento, pessoas com deficiência têm um longo histórico de preconceito nas telas e nos palcos. Obras como "A Branca de Neve e os Sete Anões", "O Mágico de Oz", "A Fantástica Fábrica de Chocolate" e programas popularescos como "Ratinho", "Pânico na TV" e "Silvio Santos" são bons exemplos.
O mais novo exemplar da indústria cultural a engrossar o rol dessas obras é o longa dirigido por Alê McHaddo, disponível no streaming desde novembro. Estrelado por Hassum e Juliana Paes, o longa tem incomodado muitas pessoas com nanismo, incluindo os atores Giovanni Venturini e Juliana Caldas, que publicaram vídeos virais de repúdio à obra.
No filme, Hassum faz o papel do cardiologista Ricardo Leão e teve sua estatura modificada por computação gráfica. Ao se apaixonar pela advogada Ivana, papel de Juliana Paes, bem mais alta do que ele, Ricardo se envolve numa jornada romântica cheia de obstáculos, como o divórcio de Ivana e o preconceito sofrido pelo casal.
"Eu tive vontade de chorar assistindo a esse filme", afirmou Venturini. "Mas não porque ele é emocionante e tocante. Pelo contrário, chorar de desgosto mesmo." Segundo Venturini, "Amor Sem Medida" desrespeita as pessoas com nanismo, gera desinformação e reforça problemas de um cinema ainda pouco diverso.
Assim como ele, Juliana Caldas criticou o longa em vídeo. "Uma das abordagens é comparar o órgão sexual masculino do cara com o tamanho dele. É um absurdo", disse ela depois de enfatizar que não se sentiu representada pela obra.
Em meio às críticas, Hassum se defendeu, em nota, dizendo "sinto muito, de verdade, pois jamais quero através dos meus filmes e [da minha] arte causar dor". "Pelo contrário, meu propósito sempre será divertir e entreter, pois acredito no humor agregador para toda a família. O filme conta uma história de amor, de pertencimento e de inclusão, valorizando as capacidades de seus personagens e repudiando qualquer preconceito, de qualquer espécie."
"Vivemos num mundo ainda distante do ideal, mas que vem caminhando no sentido de não dar espaço a nenhum tipo de preconceito, segregação ou exclusão", acrescenta. "Esta foi a intenção, por meio da leveza e do humor, abordar a importância de vivermos num mundo com mais amor e respeito, onde ser aceito e amado independe de características físicas."
O ator disse também que está "com o coração doído por não ter transmitido isso a Juliana Caldas" e que quer acolher a visão dela com carinho e respeito. O tom conciliatório também foi usado pela Netflix, que em comunicado oficial afirmou reconhecer ainda ter "um longo caminho a percorrer". "Reiteramos nosso compromisso em fazer com que mais pessoas se identifiquem com nossas histórias e se sintam representadas."
Essa é a segunda produção original da Netflix estrelada por Hassum. O filme é uma adaptação do longa argentino "Corazón de León", de Marcos Carnevale, que também preferiu investir em computação gráfica a escalar um ator com nanismo para o papel do protagonista.
Com uma série de cenas recheadas de piadas sobre a condição física de portadores de deficiência, "Amor Sem Medida" reacende discussões como limites do humor e representatividade.
Atriz, cantora e palhaça, Veca Ned, que tem nanismo, disse que não se incomodou com o filme e gostaria até de ter participado do elenco. Além disso, conta que se sentiu honrada ao ouvir a música do pai -o cantor Nelson Ned, do sucesso "Tudo Passará"- no longa.
O comediante e ator Gigante Leo, também com nanismo, ressalta que "Amor Sem Medida" é uma releitura nacional de um filme antigo, o que influencia diferentes leituras do público. "O mais importante de tudo isso é justamente ficarmos atentos para darmos novas oportunidades aos atores com nanismo", diz. "Devemos ser mais aproveitados tanto no cinema quanto na TV, principalmente em papéis onde a deficiência não faça diferença. Ainda verei um protagonista, um 'galã' de uma novela das nove ou um vilão num filme sendo interpretado por alguém com nanismo."
Leo, que faz piadas atreladas à própria estatura em shows de stand-up, defende ainda que há diferença entre rir de uma pessoa com nanismo e rir "das situações ridículas que elas passam numa sociedade capacitista".
Presidente do Instituto Nacional de Nanismo, Juliana Yamin diz que a preocupação "de uma vida engessada" não deve anular o reconhecimento do sofrimento vivido por pessoas com nanismo e, sobretudo, da importância da representatividade.
Segundo ela, o filme da Netflix tem pontos positivos, como o fato de o protagonista ser um homem bem-sucedido, o que mostra que deficientes podem ser o que quiserem. Ao mesmo tempo, porém, peca na ausência de atores com nanismo. "Por mais que a arte tenha liberdade, o cuidado é sempre válido", diz. "Se existe uma demanda por uma mudança, é porque essa comunidade sofre."
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