Decisão do magistrado não pode ser substituída por robôs em tribunais, diz advogado

Publicado em 09/02/2024, às 00h11
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Por Folhapress

Enquanto planeja a criação de uma equipe especializada em soluções com uso de inteligência artificial, a AASP (Associação dos Advogados) acompanha com atenção o avanço da tecnologia no Judiciário.

O advogado André Almeida Garcia, novo presidente da maior instituição do tipo na América Latina, com cerca de 70 mil filiados, defende limites para a robotização nas cortes.

"Não pode substituir o humano de forma alguma, tem que ser um magistrado que dá a decisão final", diz ele, que critica o uso sistemas automatizados para o recebimento de recursos.

Além de dialogar com tribunais contra o que chama de jurisprudência defensiva, ele afirma que é preciso atualizar o currículo dos cursos de direito para lidar com as transformações tecnológicas e tornar a linguagem dos profissionais mais acessível.

INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL - Garcia afirma que o uso da inteligência artificial é bem-vindo para racionalizar o trabalho de assessores e permitir aos magistrados decidir com mais qualidade, mas que o uso de robôs em tribunais superiores tem gerado decisões inadequadas e idênticas.

"A inteligência artificial é alimentada com esse olhar de fazer um filtro dos casos que devem chegar. Dá um trabalho hercúleo fazer um recurso em cima dessa decisão demonstrando o equívoco dela", diz.

"É preciso que não se adote o que a gente chama de jurisprudência defensiva, em que os tribunais se protegem contra a chegada de processos e colocam o advogado em rota de colisão com o seu cliente, que muitas vezes atribui equivocadamente que o recurso não chega ao tribunal por algo que o advogado deixou de fazer. Certamente aquela decisão foi dada não por um humano que observou o caso, mas de forma repetitiva, em lote, o que prejudica demais o acesso e a realização da Justiça."

Para o presidente da AASP, o diálogo com os tribunais ainda precisa avançar para que exista transparência sobre o treinamento dos modelos usados pelas cortes.

O temor de advogados em relação a diminuição de vagas com o uso da inteligência artificial é algo que Garcia diz ainda não ter observado.

FORMAÇÃO DOS ADVOGADOS - Para atender às demandas geradas pela transformação tecnológica, Garcia defende mudanças na grade dos cursos de direito.

"A área jurídica é muito tradicional, ela é conservadora por essência e assim deve ser, mas ela vai se adaptando ao tempo dela. As faculdades devem passar por transformação constantemente, inclusive absorvendo toda essa tecnologia em prol dos alunos. É possível adotar novas metodologias, colocar os alunos em situações mais práticas para que eles sejam melhores recebidos no mercado de trabalho."

De acordo com estudo do Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) de 2022, o Brasil é o país com a maior proporção de advogados por habitante no mundo (1 para cada 164 habitantes). O número de formados na área foi criticado pelo presidente Lula no final do ano e também é um aspecto que preocupa a associação, assim como o número de bacharéis reprovados pela Ordem.

"Observamos uma explosão de faculdades de direito, um aspecto preocupante em relação ao qual o Conselho Federal tem atuado, inclusive para que não tenhamos profissionais formados, mas com uma qualificação inadequada para o exercício. Tem que tomar muito cuidado, porque já temos mais faculdades aqui do que em qualquer lugar do mundo."

LINGUAGEM SIMPLES - Garcia destaca que assim como o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) busca a linguagem simples na magistratura por meio de um pacto lançado em dezembro, a advocacia precisa fazer o mesmo.

"Não é porque você sabe recitar alguns brocados latinos que você é um bom advogado", diz, reforçando que a orientação pela objetividade e clareza é repassada nos cursos de redação jurídica oferecidos pela AASP.

"Até por conta do volume de processos, o advogado hoje não tem condições de escrever uma petição de 20, 30 páginas. Não dá para ter a ilusão de que ela vai ser lida com profundidade. O advogado precisa exercitar o seu poder de síntese."

Isso vale também para os memoriais entregues aos juízes -síntese sobre os aspectos essenciais da causa antes da decisão-, que devem ter no máximo três páginas, diz.

"O magistrado sabe o direito. Ele precisa entender bem o seu caso. A linguagem continua sendo essencial à advocacia e ao meio jurídico. E quanto mais claro, sucinto e objetivo o advogado for, maior a chance de ser exitoso o seu processo."

INQUÉRITOS NO STF - Garcia afirma que a AASP não tem uma posição em relação à falta de conclusão dos inquéritos das fake news e das milícias digitais, que tramitam no STF (Supremo Tribunal Federal) sob relatoria do ministro Alexandre de Moraes, mas reconhece que isso é prejudicial à imagem da corte.

"A demora é algo que deve ser combatido. O tempo no processo é um fator que acaba com o direito, viola todos os direitos fundamentais, inclusive do ponto de vista internacional há recomendações do prazo que deve durar."

Em relação à condução dos processos dos ataques de 8 de Janeiro, Garcia afirma que é preciso seguir o devido processo legal, dando acesso à defesa a todos os elementos probatórios e fazendo o exame de casos específicos, individualizando as condutas para avaliar a extensão das penas.

Sem citar casos concretos, ele diz que o uso da "pescaria probatória" -quando uma diligência é autorizada sem fato justificado para colher possíveis provas e tentar "pescar" algum crime- preocupa a advocacia e pode gerar nulidade do processo e de eventuais condenações.

"Qualquer busca e apreensão, tentativa de produção de provas, têm que ter uma motivação, uma causa bem específica, elementos que justifiquem aquilo e estejam vinculados ao crime que está sendo investigado."

Sem citar as recusas do ministro Alexandre de Moraes em atender manifestações presenciais de advogados no Supremo, o que gerou críticas da OAB e Defensoria Pública, Garcia diz que a AASP observa o tratamento dado pelos tribunais diante do aumento dos julgamentos virtuais.

"A sustentação oral é um direito do advogado que deve ser observado e claro, com racionalidade, se os julgamentos são telepresenciais. Precisa urgentemente ser estudado, inclusive pelo Poder Judiciário, como é que a gente pode melhorar essa relação dos julgamentos com as sustentações orais."

No STF ele diz que a questão deve ser resolvida com o retorno das ações penais para turmas, medida anunciada pelo presidente da corte, Luís Roberto Barroso, em dezembro.

DINO NO STF - Garcia afirma que a expectativa da AASP em relação à ida de Flávio Dino para o Supremo é extremamente positiva tanto para julgamentos quanto para questões administrativas do Judiciário.

"A Corte Suprema sempre foi política e sempre será. Seu papel não é apenas judicante, ela tem um papel essencial político, sobretudo para bem exercer esse papel de contrapeso aos demais Poderes. O fato de termos ministros, não apenas o Flávio Dino, que vieram do Executivo é algo com que a corte já está acostumada."

FALTA DE DIVERSIDADE - A baixa representação de mulheres e pessoas negras nas cúpulas do Judiciário é um aspecto a ser observado pelo Executivo nas escolhas para os tribunais.

"Tem que ser algo que a sociedade esteja comprometida, até como reparação histórica. A situação não é de fácil solução. Passa, primeiro, pela chegada dessas pessoas às faculdades. As cotas têm permitido que comecem a se formar cada vez mais profissionais negros, negras, o que vai permitir que eles ocupem cargos, mas não podemos aguardar passivamente. Há necessidade de que os escritórios, o Poder Judiciário sejam estimulados a implantar medidas que acelerem esse processo de transformação."

Na AASP, que em 81 anos teve uma presidente mulher, Garcia diz que hoje há paridade de gênero no conselho e diretoria e a obrigatoriedade de ao menos um candidato negro nas chapas.

"Nos próximos anos temos expectativa de que comece a ter também uma alternância entre homens e mulheres na presidência. Nós acreditamos que a diversidade traz muito mais qualidade para o trabalho que é desenvolvido."

RAIO-X | ANDRÉ ALMEIDA GARCIA, 46 - É doutor e mestre em Direito Processual Civil pela USP, onde também se graduou. Atua em processos contra o Poder Público e Precatórios. Começou na AASP em 2014, como conselheiro substituto, e já atuou como conselheiro e diretor em gestões passadas em diferentes áreas. Também é associado ao IASP (Instituto dos Advogados de São Paulo)

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