Cinema negro ganha força no Festival de Brasília

Publicado em 11/08/2018, às 18h33
Cena do filme Eu, minha Mãe e Wallace | Divulgação
Cena do filme Eu, minha Mãe e Wallace | Divulgação

Por Redação

O Festival de Brasília recebeu este ano inscrições de maior número de filmes dirigidos por negros e conta com nova premiação, específica para contemplar a temática negra no cinema. O Prêmio Zózimo Bulbul foi anunciado durante a apresentação dos selecionados para a edição deste ano, que acontece entre os dias 14 e 23 de setembro na capital federal.

“O prêmio vai destacar um filme dentro da programação, a partir de critérios da presença e força da representação das personagens, da história e de uma série de questões que serão discutidas pelo júri para buscar esse destaque do filme a partir das questões negras, presentes na tela das produções que serão exibidas”, anunciou o diretor artístico do festival, Eduardo Valente, na última quarta-feira (8).

Este ano foram inscritos mais filmes sobre a temática ,e eles aparecem também com um percentual maior entre os filmes selecionados, segundo o diretor. Dos filmes inscritos para esta edição do festival, 68% foram dirigidos por brancos e 11% por negros. Com relação aos filmes selecionados para a mostra competitiva, os percentuais ficam em 61% de brancos, 28% de negros e 9% que não quiseram declarar.

Debate

A edição anterior  do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro foi marcada por forte discussão sobre a representação de pessoas negras nas telas de cinema, assim como sua participação nas diferentes etapas da realização de uma obra audiovisual, em especial no roteiro e direção.

O debate aumentou com o longa-metragem Vazante, de Daniela Thomas, criticado pelo papel secundário atribuído aos personagens negros, em uma trama com recorte histórico que aborda o período da escravidão no Brasil.

Valente acredita que a discussão específica sobre o filme de Thomas ganhou dimensão maior por uma série de circunstâncias, mas considera que o debate dessa questão já se desenhava pelo menos desde a edição anterior, de 2016, que contou com uma mesa de discussão sobre a produção das minorias étnicas e raciais.

“A dimensão principal, que nos chamou a atenção positivamente e que acho que teve a ver um pouco com o que aconteceu no ano passado - não quero superdimensionar por entender que aquilo é parte de um processo -, foi o aumento realmente percentual, a força e de qualidade inclusive da produção apresentada por profissionais negros atrás das câmeras”, afirmou Valente.

Prêmios

O diretor artístico relaciona o aumento das produções inscritas por diretores negros este ano ao fato de filmes com essa temática terem sido premiados na edição do ano anterior e considera essencial que esses trabalhos estejam em primeiro plano nos festivais de cinema.

“A gente acha que isso tem uma força simbólica de representação da autoimagem, de possibilidade de quebrar esse quadro histórico de invisibilidade.O festival não pode estar distante dessa dimensão essencial, que é uma demanda do próprio criador negro, interessado em mudar essa capacidade de se perceber capaz ou em igualdade de condições no sentido criativo”, acrescentou.

O diretor Marcos Carvalho acredita que a nova premiação proporciona maior confiança aos profissionais negros e incentiva a inscrição desses filmes nos festivais. “Isso aumenta a crença no realizador negro, de que é possível inscrever e ver seu filme selecionado, porque sempre existe uma desconfiança muito grande de eventuais panelas. É uma iniciativa que combina com o atual contexto, tanto de filmes que estão sendo exibidos em Brasília, o debate que aconteceu no ano passado, e essa efervescência do cinema e da cultura negra de forma geral”.

Ao lado de seu irmão gêmeo Eduardo Carvalho, ele recebeu o prêmio de melhor direção no ano anterior com o curta-metragem Chico (2016-RJ). Os irmãos Carvalho participam novamente desta edição com outro curta, o filme Eu, Minha Mãe e Wallace.

“A gente participou no ano passado e saiu de lá extremamente animado, foi uma experiência muito enriquecedora. A gente estava sem nenhum projeto, e desenvolvemos esse curta com o objetivo de tentar chegar em Brasília novamente, vimos as datas e traçamos esse objetivo com a equipe”, contou Marcos Carvalho à Agência Brasil.

A exibição de Chico na mostra competitiva do ano anterior marcou a estreia dos irmãos Carvalho no Festival de Brasília. Com 25 anos, eles  estão começando a trajetória nos festivais de cinema. “A gente tá começando a entender esse clima agora, vai ser interessante entender melhor as reverberações do que aconteceu no ano passado. Estamos começando a entender esse circuito de festivais”, disse Carvalho.

Momento atual

Para a diretora Glenda Nicácio, as discussões que ocorreram na edição anterior do festival eram urgentes e representam o momento atual dos negros no país, com políticas públicas de acesso a universidades e de regionalização da produção cinematográfica, assim com o barateamento dos equipamentos e acesso às tecnologias digitais.

“São vários fatores que fizeram com que esse público fosse se modificando e mudando de lugar. Quem antes era apenas público, hoje também é produtor, também pensa cinema, tem acesso e pode fazer. Isso é transformador, porque faz com que coisas que aparentemente eram muito naturais comecem a ser questionadas”, afirmou à Agência Brasil.

Ela acredita que esses fatores possibilitam uma diversidade de voz e conteúdo na produção audiovisual brasileira e que o prêmio Zózimo Bulbul demarca esse momento de discussão sobre o papel do negro no cinema brasileiro, além da discussão que permeou a última edição do festival.

“É um posicionamento político do festival e das pessoas que, de certa forma, passam por ele e o cercam. Esses temas não podem ficar como discussões de um filme ou demarcadas por um debate específico. Eles precisam ser cotidianos, incorporados em nossa prática de pensar cinema, questionar, fazer curadoria, assistir e avaliar os filmes, seja você espectador, produtor ou jornalista”, observou.

Café com Canela

Ao lado de  Ary Rosa, Nicácio dirigiu o longa-metragem Café com Canela, escolhido o melhor longa-metragem pelo júri popular na edição de 2017. O filme tem, além da diretora, todo o elenco formado por negros. Eles estão de volta este ano na mostra competitiva, com um novo longa-metragem, Ilha, que já estava sendo filmado durante o festival passado.

A equipe, parte dela presente em Café com Canela, esperou no set de filmagem, no interior da Bahia, o retorno dos diretores que estavam em Brasília participando do festival para concluir as gravações. Para a diretora, a estreia em Brasília, com uma premiação do júri popular, deu mais segurança à equipe e contagiou as filmagens do novo longa.

“Estar em Brasília com Café era uma possibilidade de reconhecimento e, por estar em processo de outro filme, uma possibilidade também de segurança e de generosidade com a equipe. A gravação do Ilha ficou contagiada por esse espírito de muita celebração e certeza de que caminhamos juntos em uma direção e sendo vistos”, afirmou Glenda.

Formados em cinema pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, os diretores fundaram a produtora independente Rosza Filmes, em Cachoeira (BA), em 2011, e estrearam na direção de longa-metragem com Café com Canela. A primeira exibição nacional do filme ocorreu no Festival de Brasília.

“Partindo de uma produtora do interior da Bahia, totalmente fora do eixo principal, participar do festival nos deu um ânimo com certeza. Brasília trouxe esse recorte de com que público a gente dialoga. Esse cinema que nós estamos fazendo não funciona com todo mundo, funciona pra quem, com quem, quem é que se interessa, quem é que é tocado?. Eu acho que essa é a maior coisa que Brasília trouxe nesse processo do Ilha”, afirmou Glenda.

Apan

Viviane Ferreira, presidente da Associação de Profissionais do Audiovisual Negro (Apan), considera que houve muito esforço em discutir os equívocos de Vazante, em detrimento de outras produções como Café com Canela (BA) e Nó do Diabo (PB), de  Ramon Porto Mota, Gabriel Martins, Ian Abé e Jhésus Tribuz, que apresentaram contribuições positivas sobre o papel do negro no cinema.

“É nítido que tratar as personagens negras da forma como o Vazante tratou, sem profundidade, já não cabe no tempo histórico que a gente vive. Hoje, vivemos um momento muito especial de estar compartilhando com uma geração que tem produzido de maneira estética e narrativa, com muita qualidade e sem disposição de dar um passo atrás. São coisas que deixam a gente muito feliz, na perspectiva de integrantes do movimento de cinema negro’, disse ela.

A Apan e o Centro Afrocarioca de Cinema foram as entidades que propuseram ao Festival de Brasília a criação do prêmio Zózimo Bulbul. “No curso dos debates, no ao passado, sobre ações afirmativas e representatividade, o Festival de Brasília se mostrou como um palco potente e corajoso para o enfrentamento dos debates raciais no audiovisual”, acrescentou Viviane.

A Apan surgiu em 2016, após uma série de diálogos e debates entre realizadores que frequentavam o Encontro de Cinema Negro, África Brasil e Caribe - criado por Zózimo Bulbul em 2007 no Rio de Janeiro - para atuar frente à desigualdade racial no setor audiovisual brasileiro.

“Zózimo foi um pioneiro nessa história toda, nesse movimento que está acontecendo hoje da juventude negra e dessa necessidade que, não só essa juventude, mas acho que o povo brasileiro está tendo de ver o negro representado na tela, ele por ele mesmo”, considerou Biza Vianna, companheira de Zózimo.

Diretora do Centro Afro Carioca de Cinema, ela lembrou que as principais referências de Zózimo eram os diretores do Cinema Novo, todos brancos, e considera que a militância do cineasta pelo cinema negro deixou como legado um referencial para as novas gerações. “Essa geração tem uma referência que não é a partir do olhar eurocêntrico, é a partir da valorização do seu próprio olhar. Então fico muito feliz com esse prêmio porque é a própria juventude reconhecendo esse protagonismo dele nele mesmo e por eles mesmos’, afirma.

Zózimo Bulbul (1937-2013) é autor de filmes como Alma no Olho (1973) - sua estréia como diretor -  e Abolição (1988), ganhador dos prêmio de melhor roteiro e fotografia do Festival de Brasília daquele ano. O produtor atuou em mais de 30 filmes incluindo Cinco Vezes Favela (1962) e Terra em Transe (1968), dirigiu nove, sendo o último deles Renascimento Africano, feito a convite do governo do Senegal por ocasião dos 50 anos de independência daquele país. O Encontro do Cinema Negro Brasil, África e Caribe, criado por Zózimo, completou 10 anos no ano passado, com mais de 80 produções brasileiras e internacionais de cineastas negros premiados e de jovens revelações.

Fonte: Agência Brasil

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