O campo da inteligência artificial prospera hoje após décadas de pesquisa para fazer computadores imitarem cérebros humanos, mas um grupo de cientistas está propondo tomar o caminho inverso agora: construir uma máquina que processa informações usando neurônios humanos em vez de chips de silício. Essa computação usando material biológico, afirmam, tem o potencial de realizar operações mais complexas, usando menos energia.
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Um mapa que delineia toda a agenda de inovação necessária para tornar esse objetivo alcançável está detalhado em um estudo assinado por 21 cientistas líderes em suas áreas de pesquisa. O grupo é liderado pelo biólogo e engenheiro Thomas Hartung, da Universidade Johns Hopkins, de Baltimore (EUA).
A base desses computadores de neurônios seria o que os cientistas chamam de organoides cerebrais: pequenas esferas feitas de neurônios criados em cultura de laboratório, com um sistema artificial para mantê-los ativos. Essas pequenas estruturas, que já receberam o apelido de "minicérebros" (considerado inadequado por cientistas), podem ser produzidas a partir de células humanas comuns tiradas da pele de uma pessoa. Manipuladas em laboratório para que seu DNA funcione de maneira diferente, elas se transformam em neurônios.
"Antevemos a criação de interfaces complexas em rede, nas quais os organoides cerebrais seriam conectados com sensores para captar o mundo real, com dispositivos de saída (outuput) e, finalmente, conectados entre si e com organoides de órgãos sensoriais (por exemplo, organoides da retina dos olhos)", escreveram os cientistas no artigo na revista Frontiers in Science.
Os autores do trabalho reconhecem que implementar o mecanismo que descrevem é um objetivo que ainda depende de avanços em muitas outras áreas, mas já criaram um nome para essa tecnologia: "inteligência organoide" (IO). A expressão, dizem, reconhece que esses dispositivos seriam uma tecnologia complementar à "inteligência artificial" (IA) tradicional, baseada em computadores de silício.
"Enquanto a IA visa construir computadores mais parecidos com um cérebro, a IO vai explorar como uma cultura tridimensional de células cerebrais pode operar de modo mais parecido com um computador", afirmam Hartung e seus colegas. "Entre as muitas aplicações possíveis desse trabalho está uma nova geração de tecnologias de computação biológica e híbrida (bioeletrônica), juntamente com avanços em nossa compreensão da fisiologia da cognição, da aprendizagem e da memória."
Os organoides já vêm sendo usados há uma década em estudos para entender mecanismos de doenças neurais. Um dos cientistas que assinam o estudo com Hartung é o brasileiro Alysson Muotri, professor da Universidade da Califórnia em San Diego, especialista em biologia do autismo. Em alguns de seus experimentos, Muotri comparou organoides feitos com células de pessoas autistas com outros originados de pessoas típicas.
Para tentar "ler" a atividade dos neurônios, que se comunicam por eletricidade, Muotri usa eletrodos conectados a essas culturas de células. Outros cientistas usam sensores para capturar ondas eletromagnéticas, como os aparelhos de eletroencefalograma de hospitais.
Considerações éticas - Mas os governos permitirão cientistas manipular células humanas com esse fim? Os organoides sentem dor? Eles são conscientes?
"A demonstração de ondas neurais em organoides cerebrais humanos traz esperança para a modelagem celular e uma serie de questões filosóficas e éticas", escreveu Muotri em artigo recente, já antecipando um uso maior da tecnologia. No estudo com Hartung, o cientista subscreve uma proposta de ter um comitê de ética dedicado exclusivamente à agenda de desenvolvimento dessa tecnologia.
A justificativa ética para empregá-la, afirmam os cientistas, é que ela tem grande potencial também em avançar no estudo de doenças neurológicas.
Considerações humanas à parte, a realização da inteligência organoide ainda tem muitos pré-requisitos a serem cumpridos. As tecnologias atuais para ler impulsos neurais ainda não têm resolução suficiente para dar conta de um organoide, uma estrutura do tamanho de um grão de areia que tem 50 mil neurônios, além de outras células. As técnicas de cultura celular dos organoides, além disso, ainda não são robustas o suficiente para mantê-los ativos por muitos dias.
Segundo os autores, porém, a proposta já passou do estágio de "prova de princípio" em ciência, porque a base das tecnologias necessárias para realizá-la já existe. Um esforço e um investimento em escala monumental necessários para tirar a ideia do papel vale a pena dizem os autores, porque a inteligência organoide poderá fazer coisas que ainda estão muito longe do "aprendizado de máquina" dos computadores de silício.
"O aprendizado biológico requer menos observações para aprender a resolver problemas", explicam os pesquisadores.
Eficiência cerebral - Para exemplificar a capacidade do cérebro humano (uma estrutura de 100 bilhões de neurônios armazenando cerca de 2.500 terabytes de dados), os cientistas o comparam com o AlphaGo, o sistema de inteligência artificial criado pelo Google que conseguiu recentemente derrotar o campeão mundial de Go, um popular jogo de tabuleiro chinês.
"O AlphaGo foi treinado com dados de 160.000 jogos; um humano jogando cinco horas por dia teria que jogar continuamente por mais de 175 anos para completar o mesmo número de jogos de treinamento", ponderam os cientistas.
Hartung lembra também que os sistemas atuais de inteligência artificial requerem supercomputadores que consomem cada vez mais energia elétrica e resultam em contas de luz astronômicas, que só grandes empresas de tecnologia conseguem bancar. Enquanto supercomputadores já chegaram no terreno dos 20 milhões de watts para operar, um cérebro humano opera com cerca de 10 ou 20 watts de energia.
Por todas essas razões, o esforço para transformar em realidade algo que hoje parece ficção científica vale a pena, afirmam os cientistas, ainda que seja carregado de incertezas.
"Nós antecipamos que a computação baseada em inteligência organoide vai permitir tomadas de decisão mais rápidas, aprendizado contínuo durante tarefas, além de mais eficiência no uso de energia e de dados", escrevem os cientistas.
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