Chinês alega ter criado bebês geneticamente modificados

Publicado em 26/11/2018, às 20h08
Laboratório/Ilustração | Pixabay
Laboratório/Ilustração | Pixabay

Por VEJA.com

Um cientista chinês alega ter dado um passo inédito na ciência mundial: a criação dos primeiros bebês geneticamente modificados. Segundo He Jiankui, da Southern University of Science and Technology, durante tratamento de fertilidade realizado por sete casais, ele alterou alguns embriões dos quais apenas um resultou em gestação: duas meninas gêmeas que nasceram no início de novembro. O pesquisador explicou que o principal objetivo da intervenção era tentar prover uma característica que poucas pessoas têm naturalmente: a capacidade de resistir a infecções pelo HIV, vírus que causa a Aids.

Se verdadeira, a alegação significa um grande salto no quesito científico e ético; isso porque este tipo de edição genética é proibida na maioria dos países por ser uma tecnologia considerada experimental e cujas alterações no DNA podem ser transmitidas para as próximas gerações com possível efeitos colaterais ainda pouco conhecidos pelos pesquisadores. Embora a clonagem humana seja proibida na China, a edição de genes não é. O caso será divulgado oficialmente nesta terça-feira durante a Conferência de Edição de Genes, em Hong Kong. 

Alterações genéticas
De acordo com The Guardian, nos últimos anos, os cientistas descobriram uma maneira de editar os filamentos de DNA responsáveis por comandar o corpo. O método, conhecido como CRISPR-Cas9, consegue reparar as falhas em embriões criados por meio de fertilização in vitro (FIV), tornando possível alterar o DNA para inserir um gene necessário ou desativar aqueles que causam problemas. Na realidade, o CRISPR-Cas9 é uma substância de reação de defesa imunológica natural das bactérias – de onde veio o nome da técnica.

Apesar disso, apenas recentemente a ferramenta foi utilizada em humanos para tratar doenças mortais. Por terem sido feitas em adultos, as mudanças genéticas não são transmitidas aos descendentes, ficando confinadas ao paciente. Isso, no entanto, não acontece quando as intervenções acontecem em espermatozoides, óvulos ou embriões, como é o caso chinês. 

Antes chegar ao resultado atual, He Jiankui passou anos praticando a técnica de edição de genes em ratos, macacos e embriões humanos em laboratório, solicitando patentes sobre as descobertas. Para o projeto, o cientista recrutou homens com HIV e mulheres não contaminadas pelo vírus e, embora fosse possível editar o gene para evitar a transmissão parental, ele preferiu utilizar métodos mais simples como o uso de medicamentos padrão para o HIV. A explicação é simples: He pretendia oferecer aos casais a chance de ter um filho que pudesse ficar protegido contra a doença através da edição de gene durante a fertilização in vitro. O interesse pelo HIV como objeto de estudo surgiu por ser uma das infecções mais problemáticas na China.

Passo a passo
Segundo o pesquisador, o primeiro passo foi “lavar” o esperma para separá-lo do sêmen – local em que o vírus pode se esconder. A fecundação foi feita com um espermatozoide único, unindo-o ao óvulo para criar um embrião. Quando os embriões dos sete casais envolvidos no projeto tinham três a cinco dias de idade, algumas células foram removidas e verificadas para edição.

Os participantes puderam optar por embriões com ou sem alterações genéticas para as tentativas de inserção uterina: ao todo, 16 dos 22 embriões foram editados, e 11 embriões foram usados ​​em seis tentativas de implante antes que a gravidez gemelar fosse alcançada. Para prevenir a entrada do vírus na célula, o chinês tentou desativar o gene CCR5, uma porta proteica que permite que o vírus tenha acesso às células. 

He Jiankui informou que testes feitos nos bebês sugerem que uma das gêmeas teve ambas as cópias do gene pretendido alterado, enquanto a outra mostrou uma única alteração, o que significa que mesmo com a modificação a menina ainda pode contrair HIV. O cientista disse também que não houve qualquer evidência imediata de danos a outros genes. 

Críticas
Apesar das alegações do chinês, o experimento não foi publicado em nenhuma revista científica onde pudesse ser avaliado por outros pesquisadores. Alguns cientistas que revisaram o material que He disponibilizou para a Associated Press afirmaram que a informação é insuficiente para dizer se a edição funcionou ou se danos estão descartados. Eles destacaram também que há evidências de que a edição estava incompleta e que pelo menos uma das gêmeas parece ser uma “colcha de retalhos” de células com várias mudanças.

Outros cientistas ainda denunciaram o estudo chinês como experimentação humana. “Isso é inconcebível. Um experimento em humanos que não é nem moralmente nem eticamente defensável”, protestou Kiran Musunuru, especialista em edição de genes da Universidade da Pennsylvania, nos Estados Unidos. Segundo ele, mesmo quando funciona perfeitamente, pessoas sem os genes CCR5 normais enfrentam altos riscos de contrair certos vírus, como vírus do Nilo Ocidental ou mesmo gripes comuns.

“A edição de gene ainda é experimental e está associada com mutações em genes não modificados, pode causar problemas genéticos no início ou mais tarde na vida, incluindo o desenvolvimento de câncer”, explicou Julian Savulescu, da Universidade de Oxford, na Inglaterra, ao The Guardian. 

Os críticos também alegam que não é possível precisar se os casais participantes tinham total entendimento do procedimento, uma vez que nos formulários de consentimento estava descrito como “programa de desenvolvimento de vacinas contra Aids”. Entretanto, He Jiankui disse ter explicado os objetivos do procedimento, deixando claro para os casais que o processo nunca tinha sido feito anteriormente. Ele alegou também ter providenciado cobertura médica para todas as crianças concebidas pelo projeto.

Já Sarah Chan, da Universidade de Edimburgo, na Escócia, comentou que, se verdadeiro, o experimento representa uma grave preocupação ética. Para ela, o risco de contrair HIV atualmente é muito pequeno e há outras maneiras de prevenção, além de não ser mais uma doença considerada incurável ou inevitavelmente terminal. “Colocar essas crianças em tamanho risco por causa de um ganho tão pequeno é injustificável”, alertou ao The Guardian.

Polêmica
Em entrevista à CNN, um representante do Shenzhen Harmonicare Women’s and Children’s Hospital, instituição nomeada por He Jiankui como responsável por aprovar os documentos de caráter ético, negou qualquer envolvimento no projeto. “Podemos assegurar que a pesquisa não foi conduzida em nosso hospital nem os bebês nasceram aqui”, disse ele. Ainda assim, o hospital confirmou que dois médicos citados no documento trabalham para a entidade e que uma investigação seria aberta para averiguar a questão. 

Já a Comissão de Saúde e Planejamento Familiar de Shenzhen denunciou a legitimidade do comitê de ética do hospital e o processo de revisão que aprovou o pedido. A instituição informou que já abriu uma investigação nesta segunda-feira para “verificar a autenticidade da revisão ética da pesquisa divulgada pela mídia”.

Em nota, a Universidade para a qual o pesquisador trabalha disse que ele está de licença desde fevereiro deste ano. “A pesquisa foi realizada fora da instituição pelo professor associado He Jiankui. Ele não relatou nada para a universidade ou para o departamento de biologia. Não estamos ciente do assunto”, informou. A entidade destacou que o Comitê Acadêmico do Departamento de Bilogia acredita que o projeto viola as normas éticas e acadêmicas.

Enquanto isso, mais de 120 cientistas chineses postaram uma declaração conjunta no site Wiebo condenando a pesquisa. Segundo o texto, experimentos em humanos são “uma loucura” e ninguém pode prever o impacto futuro conforme as substâncias hereditárias modificadas vão inevitavelmente se misturar ao genoma humano. Eles ainda mencionaram que o estudo prejudica a reputação da pesquisa biomédica chinesa, realizada por cientistas diligentes e seguidores da ética científica.

Com tantas questões envolvidas, o estudo acabou sendo suspenso até que a segurança deste primeiro experimento ser analisada por especialistas. Para He Jiankui, é a sociedade quem vai decidir o próximo passo em termos de aceitação ou proibição do método.

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