Centros culturais redobram cuidado com ditadura em meio a disputa de narrativas

Publicado em 14/08/2019, às 11h03
Missa na Catedral da Sé em homenagem ao jornalista Vladimir Herzog morto a 40 anos. | Fabio Braga/Folhapress
Missa na Catedral da Sé em homenagem ao jornalista Vladimir Herzog morto a 40 anos. | Fabio Braga/Folhapress

Por Folhapress

Digite Vladimir Herzog no Google. A primeira imagem que aparece é a de um homem enforcado por uma tira de pano amarrada à grade da janela de uma cela.

O jornalista tinha acabado de assumir a direção da TV Cultura quando foi intimado a depor no DOI-Codi, em São Paulo, acusado de manter ligações com os comunistas. Foi torturado e morto durante o interrogatório.

A fotografia que retrata um suposto suicídio foi forjada pelos oficiais e se tornou símbolo da luta contra as práticas do regime militar e a favor dos direitos humanos.

Mas não aparece na exposição sobre o jornalista que o Itaú Cultural abre agora. Em vez disso, ela prefere destacar a figura do pai e marido zeloso, fotógrafo oficial da família, do editor obsessivo da revista Visão, preocupado com o acesso à cultura no país, e do cineasta que Herzog não chegou a se tornar, assassinado aos 38 anos.

A mostra acontece em contexto no qual a ditadura militar é alvo de disputas historiográficas entre esquerda e direita.

Representantes do segundo espectro –o presidente Jair Bolsonaro entre eles–, se dividem entre os que defendem o regime de exceção como inevitável frente uma ameaça vermelha na época e os que duvidam de sua existência.

Essa é uma tentativa de reescrever a história que tem feito com que museus e instituições culturais, em especial as que dependem de leis de incentivo fiscal, redobrem a atenção ao montar exposições sobre o regime.

No caso da mostra sobre Herzog no centro cultural da avenida Paulista, a exclusão da fotografia polêmica partiu de um pedido da família do jornalista. Ivo Herzog, que tinha nove anos quando o pai foi assassinado, afirma que ele não passaria pelo espaço caso ela estivesse presente. 

"A foto do suicídio é uma farsa, e podia passar a ideia errada de que ele se suicidou", acrescenta Luis Ludmer, um dos organizadores da mostra e conselheiro do Instituto Vladimir Herzog.

Nos bastidores da montagem, segundo apurou a reportagem, porém, ele teria se queixado da exclusão de determinadas imagens da mostra, o que ele nega. A informação também é negada pelo Itaú Cultural em nota, na qual afirma que todos os materiais "foram selecionados e definidos em conjunto" pela instituição e o Instituto Vladimir Herzog.

"Nem todos estão na mesma linha, na mesma vibe, mas todos são ouvidos", afirma outro organizador da mostra, Claudinei Ferreira.

Além da imagem do suicídio forjado, fotografias do enterro de Herzog não entraram na seleção por motivos religiosos, segundo os organizadores. O assassinato do jornalista é lembrado, desse modo, por meio de outros documentos.

É o caso de uma linha do tempo virtual que relembra o desenrolar do caso Herzog através das décadas, duas certidões de óbito –a falsa e a verdadeira, de 2013–, e os registros da missa em homenagem a Herzog na Sé, que reuniu 8.000 pessoas na catedral e se tornou um ato contra a ditadura ao defender o enterro de Herzog dentro do cemitério israelita. Segundo a tradição, suicidas não são sepultados ali.

A exposição, fora isso, é mais solar. Resultado de um ano de pesquisas em acervos espalhados pelo país, ela apresenta de forma inédita aspectos da produção jornalística de Vlado e seu projeto frustrado de se tornar cineasta.

Além de cartas e artigos sobre o estado do cinema no país –ele defendia o uso dessa arte como uma ferramenta pedagógica–, a mostra traz o primeiro curta-metragem de Herzog, "Marimbás", de 1963, sobre um grupo de pescadores em Copacabana, no Rio de Janeiro, e o argumento para um documentário que pretendia realizar sobre Antônio Conselheiro e a Guerra de Canudos, na Bahia.

Outra exposição, "Meta-Arquivo 1984-1985", com abertura marcada para o fim do mês no Sesc Belenzinho, na zona leste paulistana, expõe de maneira mais contundente as vísceras do regime militar.

O tema, delicado diante do contexto atual, fez com que os textos e as imagens de divulgação da mostra tivessem de ser aprovado pelas instâncias mais altas do Sesc.

"Todo material que trata da ditadura tem que ter alguns cuidados que não causem melindres", explica o diretor da instituição em São Paulo, Danilo Santos de Miranda.

Ele faz questão de ressaltar que a mostra não tem como objetivo promover a militância ou "causar constrangimento" para ninguém. "A ideia é colocar na mesa os fatos, os documentos, o que pode ser mostrado e discutido."

Os documentos, no caso, são os arquivos sobre a ditadura do Memorial da Resistência de São Paulo, que ocupa o antigo prédio do Deops, Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo, na Luz.

Eles serviram de base para as obras que nove artistas produziram ao longo de um ano.

Além deles, uma série de cartas que o artista conceitual argentino León Ferrari escreveu sobre o filho e a namorada, desaparecidos durante a ditadura argentina, compõem a mostra, como uma espécie de epígrafe.

Pesquisadora que organizou a exposição, Ana Pato diz que seu objetivo é que ela sirva como espaço de escuta das histórias da ditadura, capaz de driblar as dicotomias tão típicas do momento presente em favor de um pensamento mais plural e complexo. "Gostaria que, antes da polêmica, as pessoas venham. Estamos precisando ver e ouvir. Porque às vezes a polêmica cega a gente", ela afirma. 

Paulo Miyada, curador do Instituto Tomie Ohtake que comandou uma mostra sobre os 50 anos do AI-5 –o decreto que intensificou a repressão no regime militar a partir de 1968– no ano passado, conta que optou por uma vaquinha online para realizar o evento diante da dificuldade de conseguir patrocínio pelas vias tradicionais. O catálogo da mostra será lançado no centro cultural no final de agosto.

"O processo de amadurecimento e discussão sobre a ditadura brasileira nunca foi completo", comenta. "E se hoje há novas disputas de narrativa, é mais um sinal disso."

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