Uma constatação: mecanismos que resultam no vício em jogos de azar são os mesmos envolvidos na dependência do álcool e outras drogas.
Por questões fisiológicas, crianças e adolescentes são especialmente vulneráveis ao problema.
“Miguel (nome fictício) tinha 16 anos quando decidiu apostar pela primeira vez em uma plataforma de apostas esportivas, as bets. A ideia parecia inofensiva: conseguir dinheiro “fácil” por meio de seus conhecimentos em futebol. No início, o valor destinado às apostas vinha da mesada que recebia dos pais. Depois, começou a emprestar dinheiro com amigos. Quando isso deixou de ser suficiente, buscou um agiota — atividade considerada ilegal no Brasil — para manter a frequência dos ‘chutes’.
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Aos 18 anos, por interferência do irmão, iniciou um acompanhamento médico — mas levou um tempo para conseguir participar das consultas sem que o celular estivesse conectado na plataforma, aguardando o resultado das apostas.
As histórias, relatadas à reportagem por profissionais da saúde, refletem uma onda crescente no Brasil: a dependência nos jogos de apostas, proibidos para pessoas com menos de 18 anos. Hoje, no País, existem entre 1 mil e 1,5 mil plataformas do gênero. A estimativa é do Instituto Jogo Legal (IJL). E não envolve só futebol: o jogador também pode apostar em basquete, tênis, vôlei, etc. Outro tipo de jogo é o slot – mais conhecido como “caça-níquel”. Nesse último caso, o mais popular é o Jogo do Triguinho (ou Fortune Tiger). ‘Vence a partida quem tiver a ‘sorte’ de combinar três símbolos’, explica Magnho José, presidente do IJL. “Os valores de aposta vão de R$ 0,50 a R$ 600 a cada rodada”.
A psiquiatra Nicole Rezende, especialista em dependências comportamentais pelo Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo(FMUSP), explica que os mecanismos que levam ao vício nas apostas online, quadro conhecido como “transtorno do jogo”, são os mesmos que atuam na dependência de áçcool e drogas sintéticas.
Mas, quando se trata de criança e adolescentes, o cenário é ainda pior. Isso porque estamos falando de uma fase em que áreas importantes do cérebro, relacionadas sobretudo ao controle de impulsos e até mesmo à regulação emocional, ainda estão em pleno desenvolvimento. Ou seja, esse grupo é especialmente vulnerável a qualquer tipo de dependência.
No caso dos jogos de apostas, segundo a médica, a imprevisibilidade é uma grande inimiga. É que as bets geram uma excitação ligada ao risco de ganhar ou perder dinheiro. Você aposta R$ 10 e pode ganhar R$ 100, mas também pode arriscar R$ 500 e perder tudo. Ou seja, a incerteza acaba se tornando mais gratificante do que a própria vitória.
“Como resultado, o cérebro quer repetir o comportamento, pois o considera altamente recompensador, o que acaba levando a apostas cada vez maiores e impensadas’, afirma Nicole. ‘Para os mais jovens, como as áreas de controle ainda estão em formação, essa vulnerabilidade é ainda mais acentuada. Afinal, não existem os freios que podem racionalmente colocar uma interrupção, onde você diz ‘aqui já joguei demais, é hora de parar’.
Segundo a psicóloga Elizabeth Carneiro, diretora da clínica Espaço Clif, no Rio de Janeiro, desde o ano passado, quando as bets foram liberadas e o ‘Jogo do Tigrinho’ e similares explodiram no Brasil, os atendimentos de pré-adolescentes e adolescentes que não conseguem parar de apostar ficaram cada vez mais comuns. Ela conta que os jovens costumam se envolver com as plataformas de jogos por dois principais motivos: devido à falsa ideia de lucro fácil e também porque elas cumprem um papel de válvulas de escape.
‘A adolescência pode ser uma fase complexa, e o jogo acaba se tornando uma anestesia, uma espécie de automedicação para vários tipos de problemas prévios, como depressão, conflitos familiares, ausência de afetividade, transtorno de déficit de atenção, flutuação do humor e até mesmo autoestima baixa, onde os possíveis ganhos também se traduzem em picos de melhora sobre a percepção que esses jovens têm de si mesmos”, diz a especialista, que atua com dependências há cerca de trinta anos.
De acordo com Rodrigo Machado, psiquiatra e pesquisador do Ambulatório Integrado dos Transtornos do Impulso (PRO-AMITI) da Universidade de São Paulo (USP), os sinais do transtorno do jogo podem ser percebidos a partir de mudanças emocionais e nas interações sociais. Embora cada caso seja único, é importante estar atento a uma possível queda no desempenho escolar e à dificuldade de se engajar em atividades que não envolvam os jogos de azar e o uso de celular ou computador.
Outro indício preocupante é a falta de interesse no contato com outras pessoas e a dificuldade em manter uma rotina de sono, com o famoso hábito de trocar o dia pela noite. A desregulação emocional é mais um sintoma comum, com crises de irritabilidade e agressividade. ‘Assim como acontece com a dependência em álcool e outras drogas, nesse caso também existe a possibilidade de ocorrerem episódios de abstinência’, afirma o especialista.
A mentira se torna frequente, seja em relação ao tempo dedicado aos jogos ou ao uso do dinheiro – que, muitas vezes, deixa de ser utilizado para necessidades cotidianas, como comprar o lanche da escola. A dinâmica das bets e dos caça-níqueis também resulta em uma certa intolerância com o ‘mundo real’.
‘Depois que o cérebro é ‘capturado’ e o corpo entende aquilo como algo prazeroso, acaba surgindo uma dificuldade para lidar com os estímulos do dia a dia. Os jogos estão ali, na palma da mão, com apostas muito rápidas. Você finaliza a partida e logo inicia outra. Se isso gera prazer, e é acessível, o restante acaba se tornando desinteressante’, destaca Nicole.
Outro fenômeno que tem sido observado é o desenvolvimento de pensamentos desconectados da realidade, quase fantasiosos. Segundo Elizabeth, muitos pacientes não conseguem reconhecer o problema, mesmo diante de dívidas acumuladas e sintomas de abstinência. Além disso, em alguns casos, o discurso se torna eufórico e distorcido, levando a afirmações como: ‘Eu nasci diferente das outras pessoas, mais inteligente e melhor no jogo.’
‘Muitas vezes, os pacientes acham que, se conseguirem algum dinheiro para jogar, eles vão reverter esse cenário de dívidas, porque acreditam que são bons naquilo. Eles falam ‘os problemas são as dívidas. Depois que eu pagar, não terei mais problemas’. É um pensamento fantasioso, que envolve frustração, medo, abstinência, vergonha, e, nesse misto, infelizmente há agravantes na saúde mental, como depressão, ansiedade e até mesmo tendências suicidas. Já tive paciente que chegou a dizer ‘não está valendo a pena viver’ lamenta a psicóloga. Ela ainda destaca que esses indivíduos ficam mais suscetíveis a desenvolver outros tipos de dependência, como de álcool ou outras drogas.
No ano passado, um adolescente de 17 anos, do Maranhão, cometeu suicídio após perder R$ 50 mil no “Jogo do Tigrinho” – ele tinha recebido esse valor de herança. A história é apenas uma das várias mencionadas em uma denúncia realizada em junho pelo Instituto Alana — ONG que atua na defesa da infância e da adolescência — ao Ministério Público. A denúncia aborda a publicidade ilegal de cassinos online promovida por crianças e adolescentes nas redes sociais.
O documento elaborado pela ONG também mostra que uma influenciadora de apenas 6 anos, conhecida por seus vídeos humorísticos gravados pelo primo, promove anúncios de caça-níqueis online, como o Jogo do Tigrinho, e de bets, além de divulgar rifas e sorteios de produtos caros, como motos e iPhones. Em uma das rifas, com bilhetes vendidos a R$ 1 real, o prêmio é de R$ 10 mil mais um iPhone 12 Pro Max.
Na visão de Rodrigo Nejm, doutor em psicologia social e especialista em educação digital no Instituto Alana, a estratégia das bets e dos cassinos online para alcançar o público mais jovem está estampada no próprio design das plataformas, descrito por ele como manipulador.
‘Existe toda uma arquitetura que envolve desenhos, cores e notificações dizendo que seus amigos também estão jogando, o que são elementos atrativos para os mais novos. Fora que te leva a acreditar que você vai ganhar, quando é muito mais provável que você perca. Tudo isso é cruel, porque explora vulnerabilidades do sujeito em desenvolvimento’, destaca Nejm.
Vale destacar que os anúncios das bets e dos caça-níqueis online estão em ônibus, metrôs, elevadores de consultórios médicos e até mesmo nos conteúdos produzidos por times de futebol, atletas e celebridades. Agora, quando influenciadores mirins entram no jogo da publicidade, incentivando outras crianças a apostarem, a combinação de fatores se torna ‘bastante explosiva’, na percepção do especialista….”
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