Por Roberto DaMatta, escritor e antropólogo:
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“O Brasil certamente mudou, mas ainda somos incomodados por corrupção, cumplicidade e incompetência, motivados por simpatias pessoais. Elos capazes de neutralizar programas, produzindo requintes jurídicos capazes de anular corruptos confessos e reprimir inegáveis conflitos de interesse. Daí a nossa certeza desmoralizante de que leis ‘valem pra Chico, mas não pra Francisco’ ou, para ser mais preciso, para quem tem prerrogativas legais/ou pessoais.
O exemplo mais contundente dessa afirmação está no documento que oficializa a descoberta ou achamento de nossa terra por Cabral. Nesta carta-certidão, o escrivão da frota reitera ao rei sua lealdade e, ato contínuo, solicita um favor. Eis o trecho: ‘Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da Ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro – o que d’Ela receberei em muita mercê. Beijo as mãos de Vossa Alteza. Deste Porto Seguro, da vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500. Pero Vaz de Caminha’.
Nesse palaciano pedido de favor, vemos como o relacionamento pessoal e particular engloba a notícia oficial e universal. É como se o oficial não se isolasse do universal, como seria o caso nas modernas formas de dominação. O tarifaço de Trump não poupa ninguém.
O rompimento ou relativização da norma por um costume – um gesto de consideração que a esperteza malandra justifica – é justamente o que permanece no nosso espaço público no qual mudamos regimes ingenuamente imaginando que formas de governo mudam robustos costumes escravistas e aristocráticos. O que Caminha realizou na carta caracteriza o que permeia a nossa esfera ‘política”.
A intrusão do relacional no mundo público é um hibridismo que tratamos como uma dimensão legítima da “política’. É um traço que hoje – graças à revolução digital – promove impasses e ineficiência. A comunicação digital destrói segredos particularistas e demanda uma desconfortável sinceridade. Esse traço avesso do que classificamos como ‘política’. Pois ‘ser político’ é imitar o malandro Pedro Malasartes, como digo no meu velho livro Carnavais, Malandros e Heróis.
Pedíamos ao rei. Hoje, pedimos ao mandão e aos amigos que ‘subiram’ e comandam a máquina pública. Organismo dramaticamente dividido entre favorecer amigos ou governar o País.
O favor, como uma dimensão estrutural no nosso estilo de governar, confirma o axioma de Oliveira Viana, segundo o qual: ‘Temos coragem para tudo, menos a coragem de negar o pedido de um amigo’.
Eleitos para cuidar do povo preto e pobre, moramos em palácios que, obviamente, reprimem nossos impulsos igualitários e militam contra qualquer desenho democrático.”
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