Contextualizando

A polêmica decisão no âmbito do Supremo Tribunal Federal: “A tortura factual de Toffoli”

Em 13 de Setembro de 2023 às 18:00

Texto do jornalista Diego Escosteguy:

“A decisão do ministro Dias Toffoli que anulou as provas da Odebrecht contém erros rudimentares de informação e omissões significativas de fatos imprescindíveis à compreensão sóbria do acordo de leniência do grupo empresarial. A peça é rica em adjetivos e pobre em técnica – e lógica.

Toffoli resolveu classificar como “imprestáveis” todas as evidências entregues pela Odebrecht. Fez isso em razão do teor das mensagens da Vaza Jato e por meio do entendimento de que o acordo foi fechado sem que procuradores e juízes obedecessem aos trâmites legais necessários.

O ministro – assim como Ricardo Lewandowski, seu antecessor nesse caso, e Cristiano Zanin, advogado que moveu o processo em favor de Lula e que por ele foi agora nomeado ao Supremo – interpreta os diálogos roubados pelo hacker Walter Delgatti sob a pior luz possível aos procuradores, delegados e juízes. Não há qualquer esforço de contextualizar as conversas e buscar elementos que as esclareçam. Apenas se atribui vilania onde ela pode ser encaixada.

A leitura simplória dos trechos provoca erros rudimentares. E facilita a profusão de ilações que assomam na decisão. As mensagens tornam-se o veículo pelo qual Toffoli adentra o acordo de leniência da Odebrecht – e nelas se perde, ao ignorar a abundância de fatos e processos que documentam o caso. Tudo escandaliza a quem está condicionado, pela propaganda política dominante no país, a se escandalizar.

Conversas rotineiras entre procuradores e seus pares nos Estados Unidos e na Suíça viram prova de que as autoridades brasileiras estavam a serviço do FBI, “armando” contra um “inocente” e “remetendo recursos” do Brasil para outros países, como se o acordo de leniência da Odebrecht envolvesse autonomamente três países. É o tipo de afirmação abilolada que se encontra em blogs dominados por propaganda, que se aproveitam da ignorância do público acerca de acordos de colaboração e de tratados bilaterais de cooperação para disseminar patranhas ideológicas.

O complexo acordo de leniência da Odebrecht está documentado no Supremo Tribunal Federal, na Procuradoria-Geral da República, na Justiça Federal do Paraná e no Ministério da Justiça. Ele envolveu negociações intensas entre procuradores brasileiros e advogados do grupo. Dezenas de autoridades participaram das tratativas; outras tantas nos acordos da Odebrecht nos Estados Unidos e na Suíça. O gabinete do ministro Teori Zavascki supervisionou os trâmites. Quando ele morreu, a ministra Cármen Lúcia prosseguiu com os trabalhos. O Supremo homologou o acordo. A Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal chancelou as tratativas.

Mediante o acordo, a empresa e os colaboradores entregaram voluntariamente um volume imenso de evidências, sobretudo a íntegra dos sistemas do departamento de propinas da Odebrecht. Gravaram depoimentos em vídeo. Fizeram tudo isso porque, em etapas antecedentes, os investigadores no Brasil, na Europa e nos Estados Unidos haviam obtido, especialmente, as contas secretas de propina transnacional do grupo – a Odebrecht chegou a comprar um banco para gerir as transações. A quantidade de evidências de crimes, e a escala deles, era inédita, até mesmo para os padrões brasileiros. A negociação do acordo transcorre nesse contexto.

Toffoli, assim como Lewandowski, cita mensagens em que procuradores mencionam conversas com colegas no FBI e transporte de HDs da Odebrecht em sacolas de supermercado para concluir que o acordo seguiu à margem da lei. Quem lê a decisão do ministro e desconhece o caso supõe que um dos maiores grupos empresariais da América Latina resolveu aparecer um dia no Ministério Público com evidências de crimes multinacionais numa sacola de supermercado. E que os procuradores combinaram tudo isso por mensagens, sob ordens do juiz do caso. Não se trata de um assalto aos fatos e à história. É uma agressão ao bom senso e à capacidade cognitiva da plateia.

Os sistemas de propina da Odebrecht, já parcialmente obtidos pela Polícia Federal e pelos procuradores suíços naquele momento, foram entregues pelos colaboradores. Aqueles que manejavam os pagamentos confirmaram o teor das informações dos sistemas e esclareceram operações desconhecidas. Ao contrário do que diz o ministro Toffoli, o MP brasileiro pediu à Suíça, via Ministério da Justiça, em 2016, o mesmo material – e o recebeu, em 2017, também por intermédio do Ministério da Justiça. O acervo passou por perícia do MPF e da PF. Os laudos estão à disposição de Toffoli, assim como sempre estiveram à disposição de Lewandowski.

Também estava à disposição de Toffoli um parecer da Corregedoria do MPF acerca da conduta dos procuradores na condução do acordo com a Odebrecht. A pedido de Lewandowski, a PGR instaurou uma apuração e analisou as questões levantadas pelo ministro. Segundo o parecer, não houve qualquer irregularidade nas tratativas – ao contrário. Toffoli, porém, nem sequer cita o parecer; é como se essa evidência não existisse, assim como os fatos presentes nos autos que envolveram

a negociação do acordo. Para tomar uma decisão tão severa, é de se esperar que o ministro e sua equipe tivessem analisado e sopesado todas as peças, enfrentando-as factual e juridicamente. Seria igualmente prudente que uma decisão dessa magnitude fosse discutida antes no plenário do Supremo.

A própria participação de Toffoli como juiz desse processo é questionável. Ele seria imparcial para julgar esse caso? Toffoli foi implicado na Lava Jato em consequência do acordo da Odebrecht. Emails apreendidos num computador de Marcelo Odebrecht indicam pagamentos do grupo a Toffoli, quando este era advogado-Geral da União no segundo governo de Lula. Ao depor em juízo sobre os emails, Marcelo Odebrecht confirmou o teor deles e indicou que os pagamentos descritos nas mensagens dariam-se por meio de um advogado próximo a Toffoli. O grupo de trabalho da Lava Jato na PGR pediu a abertura de investigação para elucidar o caso, mas Augusto Aras a derrubou, pouco antes de matar as forças-tarefas. Planilhas da OAS registram pagamentos para a reforma de uma casa do ministro em Brasília. Léo Pinheiro, que tocava a empreiteira, contaria o caso em sua delação, mas o tópico foi arquivado sem investigação pela então procuradora-Geral Raquel Dodge.

Talvez por quase ter sido alvo das investigações, Toffoli tenha recorrido a hipérboles em maiúsculas e negrito em sua decisão. Falou, entre outras coisas, em ‘PAU DE ARARA DO SÉCULO XXI’, a fim de buscar ‘provas’ (as aspas são do ministro) contra inocentes – o principal deles sendo o presidente Lula. Foi tudo uma ‘armação’, disse o ministro. Em maiúsculas que são dele, afirmou: “SE UTILIZOU UM COVER-UP DE COMBATE À CORRUPÇÃO, COM O INTUITO DE LEVAR UM LÍDER POLÍTICO ÀS GRADES, COM PARCIALIDADE E, EM CONLUIO, FORJANDO-SE ‘PROVAS’. Como discutir contra caixa alta?

O ministro não se limitou a anular as provas da Odebrecht. Ele validou provas inquestionavelmente ilícitas – as mensagens da Vaza Jato – e deu publicidade a elas como meio de prova para desqualificar o acordo da Odebrecht e determinar a investigação da conduta de todas as autoridades envolvidas na colaboração. Toffoli talvez não saiba, mas o número de funcionários públicos que participaram das tratativas passava, tranquilamente, da casa das dezenas. É bastante gente para investigar, inclusive gente que trabalha e trabalhava no Supremo. O ministro estipulou que a AGU e o TCU investiguem os responsáveis, o que foge à competência desses órgãos. (Poucos minutos após a decisão, a AGU anunciou uma ‘força-tarefa’ para investigar a Lava Jato; Flávio Dino disse que a Polícia Federal entraria no caso.)

É impossível analisar a decisão de Toffoli somente como peça jurídica. Ela se insere num movimento político e empresarial que visa a anular não apenas as provas dos casos de corrupção apresentados ao Brasil e ao mundo na década passada; visa a anular os fatos, reescrever a história recente do país e assegurar que nada parecido aconteça tão cedo. Retomar o controle dos fatos – estabelecer o controle da história a ser contada sobre a Lava Jato – significa manter o controle político do país na oligarquia que sempre mandou nele, do jeito que sempre mandou nele. No Brasil de 2023, o acordo da Odebrecht, e tudo que ele significa para quem voltou ao poder ou quem dele nunca saiu, não pode mais existir. É preciso anular a memória dele.”

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