Lucas Brêda / Folhapress
No dia 3 de setembro de 2021, quando Elza Soares entrou no estúdio para fazer a primeira gravação de seu último álbum, vestia uma camiseta da seleção brasileira de futebol. "Eles não podem tirar esta camisa da gente", ela disse a seu produtor, Rafael Ramos. "Quero andar na rua com esta camisa porque as pessoas vão olhar e falar 'é óbvio que essa mulher não votou naquele cara, né?'"
LEIA TAMBÉM
Essa reapropriação da amarelinha, que se tornou símbolo dos apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro -o "cara" a quem Elza se referiu,- reflete o sentimento de inconformismo e busca por justiça social esparramado pelas dez faixas de "No Tempo da Intolerância". A cantora, que morreu em janeiro do ano passado, fez desse álbum um de seus trabalhos mais políticos -ou pelo menos o mais explícito deles.
Já na primeira faixa, Elza compara o período sob Bolsonaro com a fase mais repressiva da ditadura militar, na virada da década de 1960 para 1970, que ela diz ter conhecido muito bem e que foi "muito amarga". A cantora admite sentir medo, coloca o próprio otimismo em dúvida, diz que vivemos um período de luta e faz um clamor por justiça, em especial para mulheres e para a negritude.
A fala foi retirada de um vídeo, uma gravação inédita deixada por Elza, e retrabalhada por cima de uma trilha de teclado e guitarra. Foi um dos poucos elementos do disco que a cantora não teve a oportunidade de ouvir -como os arranjos de sopro, por exemplo-, já que ela morreu antes de o álbum ser finalizado.
O disco foi foi feito por Ramos, com orientação também do empresário Pedro Loureiro e da neta da cantora, Vanessa Soares. Nos últimos anos de vida, Elza trabalhou mais intimamente com o produtor da gravadora Deck, que deixava seu estúdio sempre à disposição dela. Eles estiveram juntos nos discos "Planeta Fome", de 2019, e "Ao Vivo no Municipal", de 2022.
Quando a cantora morreu, "No Tempo da Intolerância" ficou parado por um ano até que todos os envolvidos se sentissem confortáveis para finalizar a obra. De certa forma, trata-se de um disco composto por muitos fragmentos de Elza -as vozes que deixou gravadas, as ideias que tinha para as músicas, os escritos em seus cadernos e sua influência e inspiração para quem participou do trabalho.
As letras da primeira parte do álbum, por exemplo, foram feitas a partir de cadernos que ela mantinha com anotações, ideias, reflexões e aforismos. Há citações a Martin Luther King e até uma lista de compras, que viraram poesia pela cantora em conjunto com Pedro Loureiro, com quem ela mantinha uma relação de mãe e de filha.
Essas letras foram musicadas pelos compositores Umberto Tavares e Jefferson Júnior, antes de chegar até Ramos. "A coisa acabou caindo para o samba", diz o produtor. "E o pedido de Elza quando começou a trabalhar comigo sempre foi 'Rafa, não me deixa cair no samba, já fiz todos os discos de samba que era para fazer, quero disco doidão'."
Nas palavras da cantora, a ideia era "tirar isso do samba", e o resultado é um álbum calcado no soul e no funk dos anos 1970, também com influência do afrobeat de Fela Kuti e ecos dos bailes charme do Rio de Janeiro. Remete a Tim Maia, tem baterias quebradas, arranjos elegantes de cordas e um bolero, dialogando com várias pontas da música afro-diaspórica e latino-americana.
Essa unidade sonora foi alcançada com uma banda que se repete praticamente no disco todo. "Quero jovens, cariocas, e o mais preto possível -mas quero a molecada". Este foi o pedido de Elza. "Não adianta trazer esses nomes [mais tarimbados], falando que tem que ser de tal jeito. Tem que ser do nosso jeito."
Tocam na maior parte do disco Gabriel de Aquino na guitarra e violões, Thiago Silva na bateria, João Rafael no baixo, Luiz Otávio no piano, Felipe Roseno e Kainã do Jêje na percussão. Além deles, Diogo Gomes assina os arranjos de metais e Felipe Pacheco os de cordas. Há também participações pontuais como Kiko Dinucci tocando guitarra.
A música que mais destoa sonoramente no disco é "Rainha Africana". Com letra de Rita Lee e melodia de Roberto de Carvalho, ela chegou como uma marchinha até Ramos e acabou como uma faixa de ares épicos, puxada pelas cordas e um violão de aço. Abre uma segunda parte do álbum, só com composições de mulheres.
"Mulher pra Mulher", escrita, coproduzida e com guitarra da baiana Josyara, aborda a interseccionalidade e o feminismo negro. Ela conta que a canção surgiu a partir de suas primeiras leituras das autoras Grada Kilomba e bell hooks. "Algo em mim acendia. Ouvia também as palavras de Carla Akotirene. Memórias e projetos de futuro, tudo estava ali", ela diz. "Assim que compus, no primeiro impulso, enviei para eles ouvirem. Elza gostou e disse que achava importante gravar."
Outra compositora que empresta a caneta para Elza é Pitty, autora de "Feminelza". "Tem uma ironia nessa letra que eu acho que cabia na voz de Elza -porque ela tem essa voz questionadora, irônica e forte ao mesmo tempo", diz. A roqueira, outra baiana, afirmou que a canção surgiu como um samba-rock, todo feito a partir da interpretação de Elza.
"As coisas que tenho em comum com ela -em termos de suingue, levada, ideias- tentei sintetizar tudo ali, especialmente para ela se ver ali", diz. "Fiquei muito ansiosa para saber se ela realmente se veria ali. Mas recebi a resposta com uma mensagem dela falando que tinha gostado muito e que ia gravar."
Há ainda uma regravação de "Quem Disse?", de Isabela Moraes, e uma música construída a partir de uma gravação deixada pelo ícone do samba Dona Ivone Lara. Trata-se de um registro de sete minutos, em um ambiente barulhento, no qual a sambista canta a melodia que foi retrabalhada na música "No Compasso da Vida", que fecha o álbum.
Recado final de uma das maiores vozes da história do Brasil, "No Tempo da Intolerância" tem na sua feitura um retrato do que era Elza Soares. Aos 9 anos, aparecia esporadicamente no estúdio, na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, em sessões que começavam à tarde e corriam madrugada adentro.
"Ela estava apaixonada pelo disco. Teve um dia que chegou aqui, estava cansada para gravar, mas ficou até uma hora da manhã ouvindo as músicas", lembra Ramos. "Um dia dei play pelo menos umas sete vezes em 'Te Quiero' para ela ouvir. Eu não aguentava mais, saí para fumar um cigarro, mas ela ficou lá."
Mas sua música favorita do disco era "Coragem", de levada acelerada, uma das poucas letras co-escritas por Elza em toda sua trajetória. Em um álbum sobre justiça social, ela mira a pulsão de vida que sempre a caracterizou em seus conselhos finais. "Se você é preto/ coragem, meu bem/ porque o medo da morte/ leva a vida também."
NO TEMPO DA INTOLERÂNCIA
LEIA MAIS