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Pausa para a leitura: Pão e Circo

| 18/02/24 - 09h02

Na avenida, sob o céu noturno de um fevereiro no Rio de Janeiro, uma importante escola de samba desfila seu enredo inusitado na Marquês de Sapucaí: uma homenagem à distante Maceió e a um engraxate completamente desconhecido pelos seus próprios conterrâneos. Enquanto as fantasias luxuosas cintilam sob os holofotes, Maceió, a verdadeira, enfrenta uma realidade dura, distante de celebrações carnavalescas, com inúmeros seres vulneráveis, abismos intransponíveis, problemas insolúveis, bairros inteiros instáveis e urgências imputáveis.

Nesse paradoxo, a escolha do enredo parece não apenas deslocada, mas também uma oportunidade perdida. A festa poderia ter sido uma verdadeira declaração de amor a Maceió. E a gênese do amor não reside na capacidade de adorná-lo com idealizações, fantasias ou adereços, mas na coragem de revelar sua essência real, suas cicatrizes e desafios. Mascarar a realidade é, em sua essência, traí-la. A expressão mais sincera de amor por Maceió seria a exposição transparente de sua situação atual, um convite à reflexão e ao comprometimento coletivo para a transformação.

E, então, há o investimento milionário da gestão local no Carnaval alheio, um espetáculo de vertiginosas cifras - tão exorbitantes quanto distantes da realidade dos que lutam diariamente pela sobrevivência em Maceió. É a política do panem et circenses reeditada, onde o entretenimento é usado como cortina de fumaça para as reais mazelas da população. Enquanto políticos desfilam sorridentes na passarela, seus passos de dança parecem zombar daqueles que foram esquecidos pela administração pública, cidadãos que, longe da avenida, vivem em meio a cinzas densas – maiores do que as da Quarta-Feira.

Nesse contexto, a maior homenagem que Maceió poderia receber não seria a de um enredo distante de sua realidade, mas a exposição crua de seus desafios, com a intenção genuína de melhorá-los. A ausência de menção aos bairros em calamidade no desfile é mais do que uma omissão; é uma falha desastrosa, uma recusa à realidade. Ao ignorar as tragédias e as lutas de seus habitantes, a escola de samba perde a oportunidade de ser eterna na história do Carnaval e na memória dos moradores de Maceió e de reconhecer e dignificar a resiliência e a força daqueles que, apesar de tudo, resistem intactos e continuam a lutar por dias melhores.

O carnaval, com toda a sua importância cultural, tem o poder de unir pessoas, de contar histórias, de denunciar injustiças. Mas quando escolhe o silêncio diante do sofrimento, quando opta pela ostentação em detrimento da justiça, ele falha com a essência do que deveria representar.

Maceió e a escola de samba entrelaçaram seus destinos na grandeza de seus potenciais e na queda de seus ideais. Ambas, em seus palcos distintos, enfrentaram a ameaça iminente do desmoronamento. Entretanto, há uma força resiliente que sustenta as duas; assim como o sambódromo, imponente e vibrante mesmo após o último eco do tambor, Maceió permanece, firme, resiliente, silenciosa, absoluta e magnânima em meio ao caos. Essa dualidade, a fragilidade e a fortaleza, compõe um infinito de contrastes, onde a perda não é o fim, mas um prelúdio para a renovação. Na tessitura dessa história, há uma beleza melancólica, uma ode à resistência. E a escola de samba, quase rebaixada sob o peso de suas próprias aspirações, encontra na própria fragilidade a matéria-prima para seu renascimento. Juntas, na quietude que segue a derrota, elas evocam lições soberanas e permanecem inabaláveis, eternas na memória da terra e do coração daqueles que ousam interpretar. Maceió e a escola perderam substancialmente e a verdade imposta pela realidade é a campeã do Carnaval e do mundo e segue soberana o curso dos tempos.

"Quousque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?" quão longamente abusarás de nossa paciência, questionaria Cícero, se pudesse testemunhar tal espetáculo.

► *FERNANDA VAN DER LAAN É PSICÓLOGA / @fernandissima