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Pausa para a Leitura: Olhos cegos de amor

| 26/11/23 - 09h11
| Foto: Foto: Fernanda van der Laan

Ele era menor do que minha mão. Da primeira vez que o segurei, fiquei assustada. Nunca havia abraçado algo vivo tão frágil. Imaginei quão minúsculo era o coração que batia acelerado – de medo ou alívio. Nem sei a razão que me fez imaginar um coração – naquela circunstância. Não pensei em um músculo com átrios, ventrículos e válvulas. Eu desenhei em meus pensamentos o coração que as crianças e os apaixonados tanto conhecem. Já era o prenúncio.

Ele tinha 100 gramas. 100 gramas no dia que o levei ao veterinário pela primeira vez – dois dias depois de sua aparição acidental em minha casa. Imagino que alcançou os três dígitos na balança graças aos nossos esforços insistentes em alimentá-lo. E eu me orgulhava de que ele mudara de cor depois que nos conheceu também. Chegou todo sujo, todo manchado. Depois de alguns banhos sofridos, ostentava um pelo branco brilhoso com algumas manchinhas pretas.

Meu marido estourara um champagne e minhas filhas foram procurar a rolha. Acharam-no. Parecia um rato, mas era um gato. Ou uma gata. Nem os especialistas chegaram num consenso sobre algo tão elementar no determinismo daquela vida. Mas, para mim, não importava. E aquele ser já tinha alcançado um lugar tão soberano em minha família que esse tipo de informação não faria diferença, em absoluto.

Ele era lindo. Lindo. Talvez o animal mais lindo que eu já vira. Só tinha um olho e o outro vivia coberto por remelas. E eu limpava, limpava. Lembro quando o oftalmologista veterinário anunciou a notícia mais feliz de todas: o olho íntegro enxergava perfeitamente. Fiquei tão feliz que nem achei que a má notícia fosse tão dramática: ele teria que extrair o olho machucado. E eu sabia que o pequeno cérebro dele compensaria aquela falta, lembro que até pensei que, como ele era filhote, nunca saberia como é enxergar com os dois olhos. E isso tranquilizou meus pensamentos. Sim, eu acredito que os animais são seres racionais.

Não tinha peso suficiente para tomar as vacinas necessárias. Eu acatei a orientação com tranquilidade – ele era frágil demais para sentir dor. Mas logo tive que me render e meu gatinho fez todos os exames de sangue que deveria – sem esboçar nenhum tipo de desconforto. Tão pequeno e tão corajoso. Coitado, deve ter sofrido tanto nos dias anteriores ao nosso encontro que nem sentiu a agulha. Imaginei que os mililitros de sangue retirados fariam falta naquele corpinho tão diminuto. Afastei essas ideias da minha cabeça. Eles sabiam o que estavam fazendo.

Os resultados dos exames, nunca descobri.

Ele tinha medo do escuro. Nunca entendi. E sempre deixava a luz acesa do cômodo onde ele dormia – quando não o levava para meu quarto para ser companhia nas minhas intermináveis noites de insônia. Deixava o abajur ligado. Eu sabia o que ele temia. Ele tremia, ronronava, miava e mexia as minúsculas orelhas de um jeito que eu entendia. Era o escuro - infinito do espaço quando a luz apaga. Talvez, todos devêssemos temer a escuridão.

Eu também tinha medo. De pisar nele. Aprendi a olhar para o chão enquanto ele se esforçava para acompanhar o meu ritmo. Era minha sombra. Permanecia horas no meu colo. E eu ficava dormente para não o incomodar com alguma posição que o desagradasse. Era minha distração nos ócios dos dias. Gostava de fixar o corpinho nas minhas escápulas. Gostava dos meus ossos – aquele gato com alma de cachorro ou aquele cachorro em corpo de gato. Meu fiel, minúsculo e improvável amigo. Aprendeu a correr, começou a brincar, ganhou bugigangas que adorava e passou a se alimentar sozinho. Nós dois viramos grandes companheiros. Aliás, sempre fomos três. Minha filha, Leticia, sempre estava por perto e assumiu compromissos impensáveis para uma criança da idade exata da razão, 7 anos. E os pequenos dedinhos dela pareciam perfeitos para administrar todas as pomadas e colírios que eram necessários.

Ela falava com ele. E ele falava conosco.

Quando eu contei, ninguém acreditou. Então gravei um vídeo. Eu falava e ele respondia: miau. Eu continuava e ele miava em seguida. Eu permanecia em silêncio e ele ficava quietinho. Repetia algumas coisas e, novamente, meu interlocutor mais improvável emitia aquele som – o único possível para o restrito dialeto dos felinos. E falava com a Leticia também. Apesar de insólita, esta comunicação sempre nos deixou felizes de uma forma que nunca conseguirei entender.

O ser humano conecta-se com os animais. E os bichos conectam-se com os homens. Eis uma inter-relação entre espécies tão distantes – ou próximas. Dostoiévski em Os Irmãos Karamázov correlaciona o sofrimento dos animais com a existência do mal e a dor do mundo. Na Odisseia, de Homero, Ulisses aprende o sentido de tudo quando abraça seu cachorrinho no final da epopeia - e chora, diante deste amor. Baleia é a personagem mais humana de toda a literatura brasileira. A frase mais potente de A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera, é de Teresa - desolada com a iminente morte de sua maior companhia, revela: “Fui forçada a amar minha própria mãe, mas não esse bichinho”.

Para mim, amá-lo foi natural. E ele também compreendeu isso.

Depois de completar três semanas em nossa casa, uma noite, mais bonito do que nunca, mais amado do que todos, fixou o único olhinho azul em mim de um jeito diferente. Eu já estava organizando as coisas para dormir, mas segurei-o no colo. De alguma forma, sabia que era a nossa despedida. Mas na hora, engoli um choro que não entendi e desliguei a luz.

Depois liguei.

Ele não poderia sentir medo.

À noite, faltou luz.

E o olhinho que enxergava nunca mais amanheceu.

► *FERNANDA VAN DER LAAN É PSICÓLOGA / @fernandissima