Pausa para a Leitura: O lugar do adeus

Publicado em 14/04/2024, às 09h00
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Por Fernanda van der Laan*

Hoje eu fui à casa da minha mãe. Que é a casa do meu pai. Que é e sempre será a minha casa. E eu vi tanta coisa diferente, tanta coisa nova. O que meu pai construiu está ruindo. E coisas novas e bonitas tomam o lugar do que ele fez. Hoje eu vi a piscina vazia, quebrada, destruída. E eu me senti esvaziada, despedaçada... Afundada numa ausência muito dura que a vida impôs para mim.

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É tão estranho pensar no meu pai.

Tanto tempo passou e ele não viu. E coisas se reorganizaram de uma maneira que eu não sei onde ele estaria, se estivesse aqui. Na verdade, eu não sei onde eu estaria. E eu tenho certeza de que não estaria onde estou. E as perspectivas do mundo com ele estão cada vez mais abstratas, distantes e estranhas. Um dia novo é também um dia subtraído. E eu conto minha vida enquanto tenho que apagar histórias e memórias do que não houve. Isso é tão difícil quando a falta é do protagonista. E o meu pai sempre foi o protagonista da minha vida. Desde pequena, meu pai. Aquele homem lindo, forte, valente, corajoso, honrado e justo. Ele não deixava que nada de mal nos acontecesse. Nada e nem ninguém podiam com ele. Era a minha força, o meu apoio, a minha segurança: ele era o lugar para onde eu poderia ir e voltar indefinidamente para sempre. E depois que ele partiu, continuei numa busca louca e desesperada para continuar ao lado dele, que sempre foi o meu eixo nesse mundo. E minha vida seguiu um curso curioso, hoje meu filho e meu marido têm o nome dele e eu não sei até onde isso é acidental.

A última coisa importante que ele soube sobre mim é que eu me tornaria mãe de um menino e que se chamaria Leonardo. Ele soube que eu cheguei, que eu pousei e que eu estava finalmente em casa - depois da maior viagem que uma pessoa pode fazer no planeta terra, e sei que isso o tranquilizou - mesmo naquele momento. Ele estava feliz.

E a última coisa importante que eu soube sobre mim é que eu me tornaria mãe e que eu estava voltando para casa com uma criança que mudaria para sempre a estrutura da minha vida. E eu estava contente em chamar meu filho de Leonardo. Eu queria dar esse presente ao meu pai e assim demonstrar o meu amor. Não segui o conselho da minha mãe para revelar o nome somente na hora do parto – eu nunca soube fazer surpresas – graças a Deus. Expressar amor requer coragem. E, coisa rara, eu estava orgulhosa de mim mesma naquela hora. O avião pousou e eu lembro que acordei. Tinha adormecido. O bum do trem de pouso era minha despedida. Eu nem imaginava o porvir: a dor, as lágrimas, o desespero. Mas eu lembro que estava assustada. De repente senti medo. Nessas horas, acho que as conexões que nos ligam às pessoas amadas emitem alguns alertas. Não sou mística, mas eu senti que algo muito sério estava prestes a acontecer. Não era racional, mas era real. Eu realmente estava com medo e eu queria muito ver o meu pai – de uma forma quase desesperada.

...

E eu vi. Cambaleando. Aquele homem enorme, forte como um touro, brabo como um leão, aquele gigante, veio até a minha direção sangrando por dentro. Lutando contra a dor e a morte, ele veio. Como, não sei. Talvez nem a medicina.

Os últimos passos do meu pai foram em minha direção. E depois que ele desapareceu, não soube mais para onde ir.

...

Uma nova e sombria história foi imposta para minha mãe, minha irmã, para o Leonardo que nasceria e para mim. O caos foi instituído em nossas vidas e tudo virou sei lá o que. E ficou muito tempo embaralhado, confuso, desconexo, sem sentido. Mas tudo virou de novo. E agora as coisas estão bem. E eu tento encaixar meu pai nesse mundo e não consigo. Não imagino brincando com meu filho ou embasbacado com a ideia das gêmeas - uma com a minha cara e a outra com o meu gênio. Não consigo imaginá-lo em grupos de WhatsApp ou andando de moto por esse mundo real que mudou tanto desde que ele se foi. Eu tenho uns assaltos de imaginação, penso nele elogiando as coisas que eu falo ou faço. Eu quase nunca faço as coisas certas, mas ele era meu maior admirador nesse mundo. Gostava do formato do meu rosto, do meu cabelo, dos meus esmaltes, dos meus dentes tortos, adorava que eu adorava carne vermelha mal-passada, dizia que eu tinha bom gosto e que meu nariz bizarro era belíssimo, achava minha letra linda e valorizava genuinamente qualquer coisinha que eu falava ou escrevia... Ele gostava que eu parecia com ele. Meu Deus, como eu queria que ele soubesse que cada vez que eu me olho no espelho é ele que eu quero ver.

Ele morreu com 52 anos.

Isso dói.

Não imagino meu pai com 60 anos. Não imagino meu pai sofrendo com as limitações da velhice. Ele era tão livre, tinha a alma tão jovem.

Como ele seria como avô? Ele e as meninas. Ele, Leo e Leo. Não imagino. Não consigo vê-lo mais em minha vida, em minhas alegrias e nas minhas desesperanças.

Nada seria como é, se ele aqui estivesse. Nem eu, nem as circunstâncias e nem a minha família. Quando alguém morre leva junto um mundo inteiro. As coisas que eu mais amo, não seriam como são, essa é uma certeza tão dura quanto absoluta. E eu já me acostumei ao mundo sem ele. Ainda não consigo vê-lo em fotos e estou quase esquecendo a voz firme e grave que só ele tinha. E isso não é porque não sinto mais saudades. A saudade virou algo maior e agora não tem nome. Ou talvez tenha outro nome.

O dele.

Que é meu desde que eu nasci.

► *FERNANDA VAN DER LAAN É PSICÓLOGA / @fernandissima

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