FERNANDA VAN DER LAAN*
“Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão...
Eu passarinho!”
Mário Quintana
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Há pessoas de coração benevolente e imaginação fértil que, para escapar do mundo caótico onde vivem, convidam amigos para reunir solidões. Sob pretexto do luxo do lazer, desperdiçam dias e noites em conversas vazias que ficarão sepultadas para sempre – neste curto e trôpego terreno que é a vida.
Há quem busque a evasão da maldade do mundo na caridade. E pratique-a de modo poético. Ou artístico. Doam migalhas ou fortunas munidos de olhos que validam uma bondade performática e insustentável – que só existe em retórica panfletária.
Há aqueles que falam das inúmeras riquezas que nunca possuíram, dos grandes amores que nunca experimentaram e de incríveis lugares onde nunca estiveram. Criam histórias que não existem, orgulham-se de façanhas inventadas e encarnam grandes heróis. Deles mesmos.
Há impostores, corrompidos, mentirosos e perdidos.
Há os mais frágeis, os vaidosos. Os narcisos que murcham com a luz ou com a imprevisibilidade do tempo. Tão fácil seduzi-los – tão simples destruí-los. São perversos e, em consequência, vilipendiados. E isso retroalimenta-se numa engrenagem cansativa e destrutiva.
Há os ébrios inveterados. Aqueles que bebem para encher o tempo e a alma vazia. Refugiam-se em substâncias enfeitiçadoras para anestesiar a realidade – essa companheira inseparável, sempre a postos. Fiel aliada – para uns, sombra fantasmagórica; para outros, refúgio de paz.
Há seres supostamente vivos que cerceiam qualquer manifestação humana básica. Distraem-se com frivolidades e renegam o arsenal intelectual e mnêmico em tentativas extenuantes de pertencimento. Distanciam-se do humano que os habita e nunca atingirão o atributo racional que a evolução exige. Enfeitam o corpo e a morada, mas esquecem de nutrir o intelecto. Vivem num limbo - travestidos de perfeição. Encenam realidades falaciosas – desprezam a falibilidade inerente da vida.
Há pessoas que preenchem o presente com memórias. Menos perigosas que as mentirosas, mas talvez mais infelizes. Projetam a felicidade no que passou, vivem rodeadas de distorções ficcionais das próprias vidas – para estes, o passado sempre será um trunfo que oblitera o presente. E assim como potencializam as mazelas vividas, vivem regidos por métricas de alegrias idealizadas e distorcidas. Revelam-se na grandeza das hipérboles de pretéritos perfeitos descontextualizados, adulterados e traiçoeiros. Insistem em olhar e mostrar fotografias antigas, narram aventuras fantásticas enfeitadas de vazio e saudade. Entendiam os interlocutores, convencem muitos, porém revelam uma profunda infelicidade para os mais atentos.
O passado é um visitante sorrateiro que só encontra lugar em dias difíceis. A memória é traiçoeira nas potencializações. Um exemplo prático? Vá para algum lugar de sua infância e será surpreendido pela magia ilusionista do exagero das lembranças. Sempre serão menores aqueles imensos jardins de infância. Isso serve para os sentimentos.
Há os que falam, falam, e nada dizem. Distraem-se em suas próprias explicações, traem-se em suas próprias confusões. Os logorreicos são redundantes, os verborrágicos são prolixos. Estranhamente, as vozes insistentes em falar não se alimentam do silêncio – devoram-no sem piedade ou condescendência.
Há os covardes. Detentores de uma insegurança elementar revelada em comportamentos e interações. Costumam ser omissos e injustos. Não sabem se posicionar - prejudicam e são prejudicados por um padrão de comportamento insustentável.
Há pessoas invejosas. Insatisfeitas crônicas de si mesmas. Cobiçosas vorazes, detentoras do impossível desejo de possuir o que é alheio. A inveja não advém de nenhuma escassez material – ela é o truísmo das almas vazias. Ávaros da destruição do outro, dos outros. Incapazes de reconhecer ou elogiar o belo e valoroso de outrem. Equivocados por natureza. Ávidos por troféus e tesouros que se tornam desvalidos no ato da conquista. Quase tudo pode ser alvo da cobiça míope dos invejosos. Engana-se quem acredita que a inveja se limita ao âmbito material. A mais maléfica, de fato, está circunscrita em esferas insubstanciais.
Há pessoas verdadeiras. Escravas de suas contingências, limitadas em suas circunstâncias – pessoas cheias de dúvidas, medos e lágrimas. Virtuosos insistentes, incansáveis credores de vida – lutam por causas genuínas em silêncio. Sabem que são transitórios e insignificantes, ostentam a espontaneidade das crianças e contemplam os misteriosos desígnios do destino com parcimônia. Sabem pedir perdão munidos da razão, conseguem desculpar atos indefensáveis. A verdade, guia absoluta, é bruta. Justos são injustiçados, corajosos são hesitantes. Agem sem pensar e falam antes de fazer - e não são traídos por máculas de essências corrompidas. Os bons, estes raros habitantes do mundo, triunfam. Sabem que toda e qualquer pessoa é melhor do que eles em alguma instância. Todas. Repito. As melhores pessoas reconhecem a superioridade nos outros – que existe em alguma esfera e é absoluta.
Eis enfim os que amam. Exercem o amor ao próximo, aos ofícios e ao universo. Incorporados da ética etérea do espírito, pecam com cautela. Desviam de cataclismas, tropeçam em mandamentos e são fortalecidos com o advento insondável do tempo – que é soberano nas verdades e na justiça. Os bons fazem falta. Falhos declarados, devotos de um Deus piedoso, interessados genuinamente em problemas comuns – de pessoas comuns – são os profetas da esperança que chancelam na tela, no papel impresso, na Arte, nos murmúrios e nas orações, no intangível brilho do olhar, no maciço peso do mármore – o Sentido. Da vida e do mundo.
► *FERNANDA VAN DER LAAN É PSICÓLOGA / @fernandissima
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