O perigo escondido no PMMA: denúncias crescem após caso fatal de influencer

Publicado em 06/07/2024, às 16h04
Reprodução -

Correio Brasileiense

Depois da morte da influencer Aline Ferreira, 33 anos, o Correio apurou que muitas denúncias de aplicação inadequada do gel polimetilmetacrilato (PMMA) estão chegando à Polícia Civil tanto do Distrito Federal como em Goiás. A maioria das mulheres ainda têm medo, mantendo o sigilo. Mas uma delas conversou com a reportagem e contou sua história.

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É o caso da assistente social Poliana Ferraes, 35. Segundo ela, "nunca teve problemas com a aparência", inclusive se achava "muito bonita", mas se incomodava com a papada. Em janeiro de 2021, induzida por uma influenciadora digital, procurou uma clínica de estética em Taguatinga. "Na hora, me passou credibilidade, então resolvi marcar", conta. 

Poliana pagou R$ 2,5 mil pelo procedimento. Na clínica, a mulher ofereceu também o preenchimento labial, mas ela se negou. "A mulher disse que eu tinha bigode chinês e ofereceu que eu pagasse apenas metade do valor e a outra seria em troca da divulgação no Instagram", disse a assistente social. De R$ 700, o preenchimento na área saiu por R$ 350. 

Mas as complicações não demoraram para aparecer. Ao sair da clínica, Poliana sentia muitas dores. No mesmo dia, a região do nariz ficou roxa e necrosou. "Eu não sabia que ela tinha usado PMMA. Precisei tratar a ferida, fiz enxerto e até hoje tenho dificuldades para respirar. Preciso fazer uma cirurgia de R$ 100 mil e ainda minha boca ficou um pouco torta", desabafou. 

Poliana ficou por três anos em silêncio, com vergonha, mas resolveu expor o problema como forma de alertar outras mulheres. Hoje, convive com as sequelas físicas e psicológicas. "Quando procurei a clínica, falaram que eu estava se fazendo de vítima, que quem se faz de vítima é vagabundo. Aquilo foi um abuso psicológico". 

Alerta

Autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o uso do PMMA deve ser aplicado em apenas duas situações específicas, mas acabou sendo banalizado, segundo os próprios especialistas.  Mas os excessos levam, por vezes, a complicações, sequelas e até morte, como foi o caso de Aline Ferreira, que colocou 30ml do preenchedor na região dos glúteos, em uma clínica irregular de Goiânia. 

A modelo saiu de Brasília com destino ao centro de Goiânia para passar pela primeira de três sessões de aplicação do preenchedor. A responsável pelo serviço foi Grazielly dos Santos Barbosa, dona da clínica Ame-se e sem qualquer graduação na área da saúde. Ela está presa preventivamente na Casa de Prisão Provisória (CPP) da capital goiana. 

O falecimento de Aline trouxe à tona o relato de inúmeras mulheres que apresentaram graves problemas de saúde após o uso do PMMA. A maioria dos depoimentos se assemelham: clínica com aparência de legalidade, profissionais que se dizem qualificados e formados na área e o desconhecimento da substância aplicada.

Alexandre Piassi, cirurgião plástico e tesoureiro geral da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, alerta  as pessoas que buscam esse tipo de procedimento estético. Segundo ele, o PMMA é um preenchimento permanente e, uma vez aplicado, não pode ser removido facilmente. A aplicação, no entanto, deve ser feita, preferencialmente, por cirurgiões plásticos ou dermatologistas. 

"O desejo de melhorar a aparência deve ser equilibrado com a preservação da saúde e do bem-estar. É essencial que os pacientes e profissionais avaliem criteriosamente a necessidade e a segurança de cada intervenção. Procedimentos repetitivos ou excessivos podem levar a complicações sérias e resultados estéticos indesejados", alerta o médico, que complementa que o excesso pode trazer riscos significativos, incluindo infecções, reações alérgicas, formação de granulomas, deformidades e, em casos graves, necrose tecidual.

Investigação

Na segunda-feira, os policiais civis da Delegacia Estadual de Repressão a Crimes Contra o Consumidor (Decon-GO) devem colher mais depoimentos de familiares da influencer Aline para dar seguimento às investigações. Um novo inquérito de lesão corporal seguido de morte será aberto. Por enquanto, a falsa biomédica Grazielly Barbosa segue presa por exercício ilegal da profissão, execução de serviço de alta periculosidade e indução do consumidor ao erro. 

Correio conversou com o advogado de defesa de Grazielly, Thiago Huáscar, que afirmou que a mulher tem tido crises constantes de choro na cadeia. "Ela está em estado de choque e aos prantos, até porque conhecia a Aline e as duas tinham um vínculo pelo menos desde 2021", frisou. 

"Fomos constituídos após a custódia. Hoje (ontem) estive com ela, peguei a procuração, solicitei a habilitação no processo, que corre em segredo de Justiça, e vamos ver qual será o direcionamento da defesa a partir de agora", observou o advogado. 

Por fim, Thiago Huáscar frisou que a defesa se solidariza com a família da senhora Aline e com a fatalidade que aconteceu. "(Grazielly) jamais quis qualquer resultado desta natureza e estamos à disposição das autoridades para todos e quaisquer esclarecimentos."

A Justiça pode ser solução

A reportagem do Correio ouviu especialistas para saber como proceder em casos de erros em procedimentos estéticos. A advogada Giulia Ghazi, especialista em direitos do consumidor, ressalta que esses erros causam abalos emocionais no paciente entre outras questões. 

"A partir do momento que o paciente contesta o resultado para o profissional, e esse profissional não se dispõe a reparar o dano, é possível recorrer à Justiça, para que o paciente seja indenizado pelo dano estético sofrido. Normalmente, o juiz determina uma perícia para averiguar cada caso", explica ela. 

Após constatar que houve erro no procedimento, a primeira orientação, segundo a advogada, é recorrer ao próprio profissional que o executou. "Partindo do princípio de que ele age de boa-fé, ele vai se dispor a fazer um procedimento reparador", observa. "Ao se negar, isso pode gerar uma condenação de indenização por danos morais e danos estéticos", complementa a especialista. 

No caso da influencer Aline Ferreira, Giulia Ghazi aponta que o caso é do campo criminal. "Pelo fato de a pessoa que fez o procedimento sequer ser médica, tem enquadramento criminal. Passar-se por um profissional competente, induzindo o paciente ao erro, é crime", diz. A falsa biomédica também vai responder criminalmente por usar o PMMA, material que não é proibido, mas não é autorizado para fins estéticos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). "A família de Aline pode recorrer tanto à Vara Cível quanto à Criminal".  

Welder Rodrigues, também especialista em direitos do consumidor, recomenda que, em caso de erro, o paciente reúna provas do ocorrido, incluindo laudo emitido por outro profissional. "Deve buscar uma solução amigável, a correção do procedimento, se possível, ou mesmo um acordo para ser ressarcido dos prejuízos. Em caso de impossibilidade de acordo, procurar a Justiça por meio de um advogado, Defensoria Pública ou juizados especiais", aconselha Welder. 

Condenações 

Há precedentes, no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), de decisões que condenaram profissionais por erros em procedimentos estéticos. Em 2020, a Corte manteve a condenação de indenização de cerca de R$ 25 mil, por danos morais suportados, a uma clínica no Sudoeste e à profissional que realizou um tratamento a laser para varizes. A paciente sofreu lesões definitivas e sem possibilidade de reparação. Em 2021, outra paciente, que procurou tratamento contra envelhecimento da pele do rosto e apresentou uma série de cicatrizes após o procedimento, também teve decisão favorável do TJDFT. O tribunal fixou indenização de R$ 10 mil, além do ressarcimento do valor pago pelo tratamento, mesmo após apelação dos réus, que argumentaram que houve culpa exclusiva do autor da ação, porque ele não teria completado as sessões previstas no plano de tratamento. 

PMMA 

Gustavo Guimarães, cirurgião plástico da Clínica Renoir aponta dois riscos para a aplicação do PMMA. O primeiro é em relação ao excesso de volume na quantidade de material injetado, que pode causar embolia, necrose, compressão de tecido, fatores que podem levar a consequências como compressão vascular. 

"O segundo é que o PMMA é um polímero, ou seja, um plástico, que pode carregar bactérias que causam infecções e reações alérgicas. A grande questão é que a retirada desse polímero é muito difícil, porque se trata de micropartículas que não têm adesão. Elas se infiltram no tecido e a retirada desse polímero é quase impossível sem a retirada de tecido vivo", alerta. 

Guimarães afirma que a escolha do material para um procedimento estético começa pela escolha do profissional, que é quem é capaz de julgar se aquele material é bom e se tem boa procedência ou não. "É muito difícil para o paciente fazer esse julgamento. É preciso buscar profissional com experiência e com registro no Conselho Regional de Medicina (CRM), com a especialidade", recomenda. 

O cirurgião plástico também orienta aos pacientes que obtenham mais informações junto ao profissional sobre o tratamento que ele está propondo, como riscos, consequências e a possível retirada do material no futuro. "É obrigação do médico passar essas informações". 

Visão do especialista

Sérgio Morum, membro da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica e especialista em gluteoplastia cirúrgica e não cirúrgica.

No Brasil, a popularização dos procedimentos estéticos trouxe consigo um aumento alarmante de complicações e até mortes, refletindo uma preocupante banalização da lei do ato médico. O acesso facilitado a tratamentos como preenchimentos faciais e corporais, lipoaspiração de papada e corporal, rinoplastia e outros, muitas vezes ocorre à custa de uma regulamentação inadequada pelo Poder Público. Isso permite que clínicas e profissionais pouco qualificados ofereçam serviços a preços atrativos, mas com sérios riscos à saúde dos pacientes, porém liberados pelos seus próprios conselhos de classe. 

As consequências são severas: infecções graves, reações alérgicas severas, falência renal e até embolias pulmonares fatais têm se tornado cada vez mais comuns. O pior desfecho é a perda de vidas humanas devido a erros técnicos ou utilização de produtos definitivos não aprovados pela Anvisa para fins estéticos. A falta de normas claras e rigorosas contribui significativamente para esses problemas, permitindo que indivíduos sem a devida formação realizem procedimentos que exigem competência médica especializada.

É urgente que normas mais rígidas e fiscalização rigorosa sejam tomadas pelas autoridades competentes, para resolver essa crise de saúde pública. Além disso, campanhas de conscientização são necessárias para educar o público sobre os perigos associados a procedimentos mal realizados e destacar a importância de escolher clínicas e profissionais credenciados. A quantidade de seguidores nas redes sociais não é diretamente proporcional à expertise do profissional.

É crucial que a sociedade reconheça a gravidade desse problema e se mobilize para exigir ações concretas das autoridades. A saúde não pode ser comprometida em nome da estética. A segurança dos pacientes deve ser uma prioridade absoluta em qualquer intervenção por profissionais da área de saúde, que têm a obrigação de promover a saúde, e cabe ao Poder Público garantir que isso seja cumprido em todos os aspectos da prática estética. 

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