Interior

'Na primeira pancada, já não ouvi mais a voz dele, só ouvi o grito de Flávia"; sobrevivente relata momento do trágico acidente em Flexeiras

| 05/08/24 - 13h08

Em um emocionante relato, A médica Lizianny Tenório Toledo, de 26 anos, contou como ocorreu o grave acidente de carro na BR-101, em Flexeiras, onde ela perdeu dois colegas de trabalho, a médica Flávia Emanuelly Alves França Gomes e o estudante de medicina Lucas Queiroz. Os três estavam no carro que foi atingido pelo tanque de um caminhão na manhã da sexta-feira, 2, no interior de Alagoas.

Formada há pouco mais de um mês no curso de Medicina, Lizianny comentou que tinha sido estagiária de Flávia por um ano e meio na unidade hospitalar de Joaquim Gomes. Veja abaixo o relato e os vídeos gravados pela médica sobrevivente.

"A sexta-feira era mais um dia em que eu ia dar plantão lá e a Flávia iria para o posto onde ela trabalhava. Foi um dia normal da gente sair de casa, ela me buscou, e tinha o Lucas também. Ele era um doutorando, falou comigo na segunda-feira, falando: Lizzy, quando é que posso ir lá acompanhar vocês? Eu disse para ele combinar com a menina que organiza as datas para ir acompanhar. Ele disse: vou na sexta. A gente combinou, eu disse a ele que ia de carona com a Flávia. Ele perguntou se podia ir com a gente, eu disse que sim. Ele veio ao meu encontro, a Flávia pegou a gente e fomos". 

"Estávamos conversando sobre residência, onde eu queria fazer. Eu tinha dito que queria fazer em outro estado, mas sem querer morar nesse estado (cogitado). Aí ela disse: fique aqui pertinho da gente. Ela contando as coisas que tinha conquistado nesse um ano e meio de formada. Ela estava muito feliz,  extremamente realizada, sabe? A gente tinha acabado de falar sobre residência e ela tinha botado uma música, e eu disse: essa música me lembra quando eu era adolescente. Ela disse: vou te mostrar minha playlist das antigas. Foi na hora que mudou para uma música e foi quando veio a curva. A gente estava do lado esquerdo da faixa, o caminhão estava do lado da direita. Só me lembro que na hora da curva, deu a primeira pancada atrás de mim, que era onde estava o Lucas. Na primeira pancada, já não ouvi mais a voz dele, só ouvi o grito de Flávia e eu gritei por ela. O carro dela foi para um lado, ela voltou. Nessa hora que voltou, o caminhão voltou a tombar em cima da gente. E arrastou ainda um pouco. Depois disso não ouvi mais a voz de ninguém. Gritei por eles, mas ninguém mais falou comigo. Só consegui olhar para o céu... Só consegui olhar para o céu mesmo. Ali eu já tinha entendido que eles tinham ido, porque ninguém mais falava comigo. Depois foi tudo muito rápido. O motorista do caminhão veio, outras pessoas apareceram tentando ajudar, tentando me tirar dali. Estava tentando entender aquela situação e, ao mesmo tempo, fazer alguma coisa, mexia na Flávia, que estava ao meu lado".  

"Tentei mexer na Flávia ainda, mas ela não se mexia. O Lucas, eu não conseguia me virar para vê-lo, porque tinha uma barra de ferro. Fiquei literalmente no meu lado um cilindro do caminhão, na minha frente tinha um monte de ferro, na minha cabeça e nas minhas costas também, ao meu lado tinha um pneu. E eu só queria sair dali. Foi quando o motorista do caminhão veio, tentou me acalmar e me tirar dali. Foi quando as pessoas vieram me ajudar. Falei que a gente trabalhava no hospital de Joaquim Gomes, tentaram entrar em contato. Foi quando tudo foi acontecendo como vocês viram. Confesso que ainda estou num misto de sentimentos. Acho que no dia eu não tive noção do tamanho que foi aquilo, do quão devastador foi". 

De acordo com testemunhas, o tanque de combustível teria se desprendido do caminhão e atingido o carro de passeio, um Tiggo de cor prata, onde estavam as vítimas. Três viaturas do Corpo de Bombeiros com 12 militares foram encaminhadas ao local para socorrer os envolvidos.

"Na hora do acidente, depois que chamaram o Samu, a enfermeira me deu a mão, a Adriana, ela estava com a pulseira de Nossa Senhora da Consagração. Ela perguntou: 'Como é que você está?'. Não consegui responder como eu estava, só consegui olhar para a pulseirinha dela e falar: 'Você é consagrada?'. Ela disse: 'Eu sou'. Mostrei a minha pulseirinha também, que estava usando, e fiz: 'Mulher, eu também sou'. Ela falou: 'Nossa Senhora me mandou aqui'. Eu disse: 'Meu Deus, você me deixou viva e ainda manda gente para cuidar de mim'. Ela disse: 'Eles não fazem serviço incompleto, Deus só faz serviço completo'".  

"Eu me vi morrer, mas também me vi renascer ali. Sem dúvidas, não tem explicação. Olhando aquelas fotos, não era para eu estar aqui. Não era, não era, não era. Mas Deus foi tão bom, tão bom... Não que Ele tenha sido ruim para os outros, mas Ele tem algo para mim, que eu ainda vou descobrir. Ele não me deixou ir. Sempre falo assim: 'Mesmo diante das minhas imperfeições, mesmo indigna, infiel, Deus continua ali cumprindo a promessa D'Ele'. Se Ele me deixou aqui, Ele tem algo que ainda quer de mim. E eu prometo do fundo do meu coração ser alguém como a Flávia e ter o entusiasmo do Lucas".

HOMENAGEM AOS AMIGOS

Em post aberto no Instagram, na manhã deste sábado, 3, Lizianny prestou homenagem aos amigos que estavam a caminho do Hospital Municipal Joaquim Gomes

"Agora só espero que eu seja uma médica como a Flávia, e que eu nunca esqueça a sede de conhecimento do Lucas. Acho que é isso que nos move. A sede do conhecimento e não esquecer que a gente tem que ser bondoso, humano, que temos que estar ali pelo outro. Ser médico não é fácil, são muitas coisas que a gente passa, são muitas situações difíceis, mas a Flávia tirava de letra, sem medo de errar. Acho que ainda não digeri tudo que tenho para digerir. É aos poucos, mas estou tendo uma rede de apoio muito grande. Minha família, meus amigos, todos do hospital, pessoas que eu nem conheço, mas que estão mandando mensagens tão lindas, que tentam aquecer o coração. Eu desejo meus profundos sentimentos à família da Flávia e do Lucas. Peço a todos que estão vendo que rezem pelas almas delas, para que Deus os coloque em um lugar muito bom. Fisicamente eu estou bem, só algumas escoriações e hematomas, mas não é nada. Psicologicamente estou sendo acompanhada por um profissional que já me acompanhava. Eu nem queria gravar esse vídeo, nem falar nada, mas decidi falar, acho que vivi um milagre. Isso não tem questionamento. Vivi um milagre. E eu vim aqui falar por conta disso. Se Deus me deu a oportunidade de continuar aqui, é porque tenho uma missão ainda a ser cumprida. Enquanto eu puder falar D'Ele, eu vou falar". 

Lizianny, sobre Lucas - "O Lucas falou comigo há menos de um mês para tirar uma dúvidas. Ele estava meio inseguro, com medo desse novo, mas tinha muita vontade de aprender. O Lucas parecia eu no começo. Na faculdade de Medicina, a gente tem o internato. Então, quando comecei o internato, eu só queria aprender, porque eu dizia que não queria ser uma médica medíocre. O Lucas me lembrava no começo, só queria aprender para ser bom para os pacientes dele. Ele tinha sede de conhecimento"

Lizianny, sobre Flávia - "A Flávia era uma médica sensacional, extremamente competente, dedicada, feliz. Nossa... Você chegava e o 'bom dia' dela alegrava você, sabe? Carrego comigo um pouco da Flávia e espero mais ainda carregar comigo tudo que ela me ensinou, porque se eu for um pouco do que ela era, já tá bom. Espero que eu continue sendo uma médica como a Flávia"

Orações - "Gostaria de agradecer a todos os profissionais, Samu, Bombeiros, polícia, pessoas do hospital que trabalho, são amigos mesmo. Me deram apoio a todo instante, não soltaram a minha mão. Agradecer à minha família e aos amigos, todos que se preocuparam. Pessoas que eu não conheço, mas que rezaram por mim, por Flávio e por Lucas. Tenham certeza que suas orações chegaram até mim. Peço que continuem rezando por nós, pelas almas da Flávia e do Lucas, e pela caminhada que terei pela frente".