Folhapress
O lixo virou o lar de polvos. E há casas de sobra para eles no mar. Até mesmo uma espécie recém-descrita do animal só foi documentada em meio ao lixo humano que vai parar no oceano.
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Pesquisadoras brasileiras usaram 261 fotografias tiradas por voluntários ao redor do mundo e buscaram catalogar como os polvos usam o lixo amplamente disponível nos mares do mundo. O estudo foi publicado no Marine Pollution Bulletin.
Garrafas (quebradas ou não), latas de bebidas e até baterias de carros acabam virando morada para esses cefalópodes. E, como não poderia deixar de ser, os abundantes plásticos também fazem parte da lista de sujeira.
As pesquisadoras até mesmo se surpreenderam pelas "casas" plásticas não serem as mais comuns entre os animais. Residências de vidro ficaram em primeiro lugar, representando mais de 40% das documentações. Mas a explicação para isso pode ser simplesmente o fato de que o vidro, por sua densidade, chegar ao leito marinho. Enquanto isso, os plásticos mais comumente achados no mar são menos densos que a água salgada e flutuam, além de se fragmentarem com o tempo.
Segundo as cientistas, o vidro também poderia ter um formato mais "aconchegante" como abrigo e ter uma textura mais parecida com a do interior de conchas. O lixo acaba sendo mais usado por animais menores e por bichos jovens, considerando que os maiores usam rochas e corais.
"Eles estão se adaptando a esse novo ambiente criado pela poluição humana", afirma Maira Proietti, professora do instituto de oceanografia da Furg (Universidade Federal do Rio Grande) e coordenadora do projeto lixo marinha da universidade. "O primeiro ponto preocupante é perceber que o lixo está tão abundante que os animais estão considerando-o um habitat adequado. Eles estão usando como toca, mas podem também estar ingerindo esse lixo."
Os polvos são moluscos que perderam suas conchas. Por esse motivo, necessitam de conchas externas ou outras formas de proteção e abrigo. O problema, dizem as pesquisadoras, é que as pessoas costumam pegar conchas e que essas também sofrem com um processo de acidificação do mar, o que dificulta a calcificação/formação dessas estruturas.
Dependendo de como você olha a situação, pode parecer algo positivo dar um abrigo para um ser vivo. Mas a situação é mais complexa e necessita de mais estudos, afirmam as autoras.
Até mesmo uma recém-descoberta pelos cientistas, como o polvo pigmeu Paroctopus cthulu, já sofre os impactos. Descrito pela primeira vez em 2020/2021 por Tatiana Silva Leite, professora do departamento de ecologia e zoologia da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), e outros pesquisadores, o cefalópode até o momento só foi encontrado em esconderijos de lixo. A descoberta do animal, inclusive, em Ilha
Grande, Rio de Janeiro, aconteceu quando pescadores e mergulhadores tiravam lixo do mar; conforme latinhas eram colocadas no barco, os animais começaram a sair de dentro delas. Segundo Leite, entre 80% e 90% do tempo dos polvos é dentro de suas tocas, o que, no cenário oceânico atual, significa uma boa parte da vida em meio ao lixo.
O uso para moradia -e até para depósito de ovos- de objetos jogados no mar também demonstra outra coisa em relação aos polvos: são animais extremamente adaptáveis. Há relatos antigos de polvos vivendo dentro de ânforas e recipientes de barro, afirma Leite. Mas a situação agora é outra.
"Não quer dizer que seja saudável ficar no lixo. Vemos seres humanos fazendo uso de lixo, mas não quer dizer que seja saudável. Não sabemos a transferência dos poluentes para os animais", afirma a pesquisadora da UFSC.
Vidros, por exemplo, em teoria, poderiam ter menor potencial de transferência de contaminantes para os animais, mas um vidro quebrado (ou uma latinha pela metade) traz riscos de ferimentos aos animais. Além da capacidade adaptativa, os polvos também são animais inteligentes, inclusive com capacidade de uso de ferramentas -uso de cascas de cocos como esconderijo, por exemplo-, como vemos em poucos animais no planeta (entre eles, nós mesmos). Polvos também podem usar o que tiver disponível ao redor para fechar a entrada de sua toca, até mesmo lixo.
As fotos usadas para o estudo foram feitas em locais com atividade turística e com ajuda de ciência cidadão, ou seja, pessoas comuns fazem as capturas de imagem e repassam para os pesquisadores. Mas há registros de polvos interagindo com lixo até mesmo em águas profundas, aonde só é possível chegar com veículos subaquáticos.
Dessa forma, não é possível imaginar que os resultados do que foi encontrado fossem ser muito diferentes em outros lugares. "Pensar em locais intocados pelo lixo é praticamente impossível. Até locais extremamente remotos vão ter lixo, porque ele vai ser transportado pelas correntes e ventos", afirma Proietti. "Não existe mais lugar intocado pelo lixo."
Com o que vem observando, Leite afirma ser importante alertar as pessoas para tomar cuidado até mesmo ao tentar fazer uma boa ação e retirar o lixo do mar, considerando a possibilidade de aquela ser a casa de um polvo.
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