Folhapress
Em meados dos anos 1980, quando ainda fazia curtas em Guadalajara, no México, o cineasta Guillermo del Toro ficou tão fascinado pela série literária "Histórias Assustadoras para Contar no Escuro" que comprou nove ilustrações originais do livro, mesmo inundado de dívidas. O que parecia loucura para um jovem artista virou um investimento certeiro. Em agosto, a adaptação homônima da obra de Alvin Schwartz, lançada em 1981, chega aos cinemas com produção e roteiro de Del Toro, seu primeiro grande filme desde o Oscar por "A Forma da Água" há dois anos. "Sinto que trabalho neste projeto há muito mais tempo, pois os livros fazem parte da minha imaginação juvenil", conta o mexicano.
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Como já estava comprometido com vários projetos, inclusive "A Forma da Água", Del Toro não pôde assumir a cadeira de diretor, um desejo do estúdio. A função foi repassada para o norueguês André Øvredal, de "O Caçador de Troll". "André tem um estilo muito elegante, mas também delicioso de assistir. Há dois tipos de horror, o perturbador e o divertido. Ele faz o segundo muito bem", explica o produtor e roteirista.
"Histórias Assustadoras para Contar no Escuro" segue a linha retrô de séries como "Stranger Things" ou de filmes como "It: A Coisa", mas Del Toro lembra Steven Spielberg e sua produtora, a Amblin, como maiores inspirações. "Queria fazer um horror para a família. Você cresce com esses filmes, então conhecemos os limites para obtermos uma classificação indicativa para crianças acima dos dez anos. Quando elas entram nessa fase, querem se rebelar contra os pais e contra o sistema. Não importa a época. Por isso que Roald Dahl e Walt Disney foram tão bem-sucedidos. Souberam equilibrar o lado sombrio com os ritos de passagem", lembra ele. "Pinóquio virando um burro até hoje me assusta."
A trama se passa em 1968, numa pequena cidade americana chamada Mill Valley. Um grupo de adolescentes liderado pela esperta Stella, vivida por Zoe Margaret Colletti, entra numa mansão considerada mal-assombrada e encontra um livro mágico que conta histórias baseadas nos medos de quem o lê.
Os textos, claro, viram realidade e orbitam em torno de questões morais, como a jovem obcecada por beleza que ganha uma espécie de espinha cheia de aranhas no rosto. Del Toro decidiu não dividir o longa em pequenas histórias isoladas, seguindo a linha da adaptação "Goosebumps: Monstros e Arrepios", de 2015. "Adoro antologias, mas as pessoas sempre tendem a lembrar do episódio mais fraco, então preferi fazer um filme tradicional com algumas histórias retiradas de vários volumes do livro", afirma o produtor.
Uma dessas histórias é a do espantalho Harold. No livro original, ele é o pivô da briga entre dois fazendeiros, mas no filme atual, a criatura é alvo da violência de adolescentes valentões e então decide partir em busca de vingança.
Quando o trailer foi lançado, em março, comentários nas redes sociais diziam que o personagem lembra o presidente Jair Bolsonaro. "Sim, consigo notar a semelhança", diz Del Toro, às gargalhadas, ao saber da comparação. "Mas a inspiração de todas as criaturas do filme veio das ilustrações originais de Stephen Gammell que estão nos livros."
A personalização de cada monstro de "Histórias Assustadoras para Contar no Escuro" foi comandada pessoalmente por Del Toro. O mexicano ficou em Los Angeles criando e aprovando a maquiagem com os artistas escolhidos, enquanto o Øvredal dirigia o filme em Toronto. "Só há cerca de 20 pessoas no mundo todo que conseguem transformar maquiagem em criaturas de verdade, com expressões perfeitas. Cada monstro teve o melhor escultor do mundo", exalta ele.
A criação dos personagens assustadores, aliás, foi a maior influência de Guillermo del Toro no papel de produtor. "Eu costumava checar duas vezes para ter certeza se ele realmente estava me dando a liberdade para decidir determinadas coisas sozinho", brinca o diretor André Øvredal. "Minha posição como produtor é simples", completa Del Toro. "Não faço com os outros o que não quero que façam comigo. Apenas digo que 'sou mais gordo e velho que você, mas a decisão é toda sua'. Tentei protegê-lo de qualquer interferência externa no seu processo criativo."
O mexicano sempre costurou mensagens políticas em seus longas. "A Espinha do Diabo", de 2001, é um filme de fantasmas em plena Guerra Civil Espanhola. Já "O Labirinto do Fauno", de 2006, usa a fantasia como pano de fundo das atrocidades do ditador Francisco Franco. O novo filme lida com a perda da inocência dos Estados Unidos nos anos 1960, mas de maneira mais íntima.
"O horror é uma ferramenta maleável para discutirmos a sociedade", analisa Del Toro. "'A Noite dos Mortos-Vivos', de George Romero, é o filme perfeito sobre o Vietnã. O novo movimento de séries de zumbi é sobre o sentimento dos republicanos mais radicais do interior, exaltando o jogo da caça, mas sem empatia pelo próximo. Todos os grandes filmes de terror refletem um momento específico do mundo. Jordan Peele [diretor de 'Corra!'] está criando toda uma nova voz sobre os Estados Unidos hoje em dia."
A ascensão da ultradireita e a intolerância do mundo atual formaram o subtexto de "A Forma da Água", que ganhou quatro Oscar, inclusive melhor filme e direção, ano passado.
Del Toro diz que nada mudou com suas estatuetas, mas que está honrado pelos prêmios. "Preciso ter outra perspectiva. Quantas pessoas lembram do filme vencedor de 1987? Ou 1993?", pergunta. "Você existe em um determinado momento, mas são os filmes que viverão para sempre."
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