Falta de remédios é entrave para tratar forma grave da dengue, mostra estudo

Publicado em 15/02/2024, às 15h21
Foto: Reprodução/Agência Brasil -

Cláudia Collucci/FolhaPress

Testes de diagnóstico com baixa sensibilidade, falta de biomarcadores que identifiquem os pacientes com mais chances de complicação e ausência de medicamentos específicos para tratar as formas graves da dengue são fatores que sobrecarregam os sistemas de saúde e podem contribuir para piores desfechos.

LEIA TAMBÉM

Uma recente revisão de estudos publicada na revista Plos Global Public Health chama a atenção para esses fatores no momento em que o Brasil vive uma escalada de casos de dengue e aumento no número de internações.

Nas seis primeiras semanas do ano, o número de registros da doença quadruplicou no país. São meio milhão de casos, 75 mortes e outras 350 estão sob investigação, segundo dados do Ministério da Saúde. Hospitais privados de São Paulo tiveram alta de 80% das hospitalizações por dengue.

A Rede D'Or, maior grupo de hospitais privados do país, por exemplo, registrou na primeira semana deste mês um aumento de 1.577% nos atendimentos de casos suspeitos de dengue na comparação com o mesmo período de 2023.

De acordo com o estudo, nos últimos anos houve inovações no controle do vetor, o Aedes aegypti, como repelentes espaciais e a liberação de mosquitos infectados com wolbachia, uma bactéria que infecta o mosquito e impede que os vírus da dengue, zika, chikungunya e febre amarela urbana se desenvolvam dentro dele.

Também mostra avanços no campo das vacinas. O imunizante QDenga está disponível no SUS (no momento, para crianças de 10 a 14 anos de municípios específicos). Outra opção em clínicas particulares é a vacina Dengvaxia, indicada apenas para quem já teve ao menos uma infecção pela doença.

Por outro, ainda existem lacunas importantes de diagnóstico e terapias. Diagnosticar pacientes com dengue aguda é um desafio devido à semelhança dos sintomas clínicos durante o início da doença. O padrão ouro dos testes é a biologia molecular (RT-PCR), mas ela não está disponível amplamente.

O teste rápido, baseado na detecção de uma proteína do vírus, é o mais utilizado, mas pode ter baixa sensibilidade, com muitos resultados falsos negativos, segundo a revisão de estudos.

"O profissional vê o teste negativo e descarta a dengue, o que é um risco. Os testes mais comuns são limitados em termos de performance e ainda há problemas de acesso aos testes melhores", explica o infectologista André Siqueira, pesquisador da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e um dos autores do estudo.

Em situações de grande circulação do vírus, é comum que o diagnóstico da dengue seja feito apenas com avaliação médica. Mas há sempre o risco de a doença ser confundida com uma outra de sintomas parecidos, retardando o tratamento adequado.

"Há muitas doenças com sinais parecidos aos da dengue, desde a gripe até a leptospirose. A leptospirose também pode alterar as funções dos rins e do fígado e provocar sangramento. Tem que fazer o diagnóstico diferencial, ter um sistema treinado e preparado", diz o infectologista David Uip, atual diretor nacional de infectologia da Rede D'Or.

O estudo aponta que a inexistência de medicamentos para o estágio inicial da dengue, que pudessem prevenir a progressão para a forma grave da doença, é outro fator que dificulta a assistência e gera mais custo aos sistemas de saúde.

Há estudos em andamento para identificar agentes antivirais de ação direta que reduzam ou inibam a replicação viral e medicamentos direcionados ao hospedeiro, além do uso de anticorpos monoclonais, mas ainda estão em fases iniciais da pesquisa clínica.

"Não há nada na mão. Hoje você sustenta a vida. O indivíduo com dengue grave que chega com insuficiência respiratória, você coloca no respirador, por exemplo. Não temos recursos específicos, é uma encrenca. A Covid você consegue tratar com antivirais antes de complicar, a dengue não. Você interna, faz o tem que fazer, pode dar certo ou errado", diz Uip.

O infectologista reforça que a maioria dos pacientes está sendo tratada ambulatorialmente, com hidratação, mas tem aumentado os casos daqueles que precisam ser internados em razão da febre hemorrágica e outras complicações, como miocardite e problemas neurológicos.

Os pacientes mais vulneráveis à forma grave, segundo ele, são os mais velhos e os com comorbidades. "Mas acabei de dar alta para um menino de nove anos que não tem nenhuma doença associada e teve uma dengue com alteração de frequência cardíaca", diz o médico.

A revisão de estudos também mostra uma mudança etária da doença. Até a década de 1990, a dengue era predominantemente uma infecção infantil, com poucos adultos desenvolvendo a febre hemorrágica e outras complicações.

No entanto, a idade média das infecções tem aumentado em muitos países. Na Tailândia, passou de 8,1 anos em 1981 para 24,3 anos em 2017. No Sri Lanka, entre 2000 e 2018, a proporção de casos em crianças caiu de 59,9% para 35,7%.

Segundo André Siqueira, da Fiocruz, essa mudança também tem impacto na assistência. Adultos infectados com fatores de risco como diabetes, hipertensão, doença renal e doença cardiovascular têm mais chance de desenvolverem a forma grave da doença e precisar hospitalização.

Mas é necessário cuidado também em situações menos graves que envolvam essa população. "A hidratação excessiva em um idoso pode criar outros problemas, edema no pulmão, por exemplo."

Para Uip, serviços públicos e privados de saúde precisam se preparar não só com o treinamento das equipes para o manejo adequado do paciente, como também ter uma resposta rápida para a compra de insumos adicionais e a abertura de leitos.

"Tem que prever que vai internar mais, vai precisar de mais soro, mais diagnóstico, mais leitos de internação e de UTI [Unidade de Terapia Intensiva]."

Outro ponto importante, segundo ele, é o acompanhamento do paciente após o primeiro atendimento. "A dengue tem uma convalescência sintomática longa, não dá para atender essa pessoa e mandar ela retornar ao mesmo pronto-socorro, que estará lotado de novos casos."

Na sua opinião, o atendimento de retorno deve acontecer em um ambulatório ou mesmo por meio de teleconsulta. "O que não pode acontecer é dar alta sem volta. Às vezes, você tem complicação da dengue no décimo dia [após o início dos sintomas]. Esse paciente tem que ser acompanhado. A responsabilidade do hospital ou da unidade de saúde não termina no primeiro atendimento."

Gostou? Compartilhe

LEIA MAIS

Chikungunya matou mais até agosto deste ano do que em todo 2023, alerta Fiocruz Sono irregular pode aumentar risco de derrame e ataque cardíaco, diz estudo O que é a hidrolipo e quais os riscos do procedimento feito por mulher que morreu em clínica em SP Hospital da Mulher passa a agendar consultas para inserção do DIU