Ex-presidente do Banco Central diz: “Memória da hiperinflação tem de ser alimentada para que essa desgraça não retorne”

Publicado em 29/09/2024, às 16h09

Redação

Muitos jovens foram aos eventos celebrando, neste ano, os 30 anos do Plano Real.
Uma geração que não viveu a hiperinflação, mas lembra dela  com incrível detalhe.
A observação é do economista Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central:

“A maior parte das plateias nos eventos celebrando os 30 anos do Plano Real é composta de jovens. Eles não viveram a hiperinflação, mas lembram em incrível detalhe. Como é possível?

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São as histórias da mesa de jantar, as que os pais, ou avós, contam para as crianças mostrando fotos antigas. Assim se organiza a memória.

Os relatos são parecidos e podem ser divididos em dois grupos: os de assalariados e os de comerciantes.

Os primeiros relatam às famílias o pânico de receber o salário e correr para o supermercado antes de o dinheiro derreter.

Os comerciantes relatam o pânico de vender e não conseguir recomprar mercadorias para continuar seu negócio. Trinta anos depois, não dá nem para imaginar, mas vamos tentar: imagine um comércio que tenha mil itens à venda, inflação média na faixa entre 30% ou 35% ao mês, e dois funcionários remarcadores, com capacidade para etiquetar 50 produtos por dia.

Não há código de barras, os remarcadores refazem as etiquetas com uma pistola com jeito de National Kid, que prega etiquetas em um produto de cada vez. Em 10 dias, dois pistoleiros conseguem remarcar todo o estoque, portanto, em um mês típico, cada produto é remarcado três vezes, com reajustes na faixa de 10%.

Os clientes facilmente entendem essa lógica e quando recebem seus salários correm para o supermercado para procurar os produtos do nono dia, aqueles prestes a serem remarcados, exatamente os que o pistoleiro vai pegar naquele dia.

Se os clientes conseguem, vão fazer uma bela economia, mas se todos conseguirem o supermercado vai perder, e vai demitir o gerente, ou vai ser uma quitanda a quebrar, e uma família de comerciantes a perder seu ganha-pão.

Claro que os comerciantes percebem o que as famílias fazem e se preparam. Geralmente contratam mais pistoleiros e dão reajustes mais carregados.

Se todos fazem isso, a inflação acelera, e tudo fica pior. Todo mês é uma aventura. As famílias às vezes levavam as crianças para correr na frente do pistoleiro. Talvez mais lenda do que fato, mas as crianças cultivaram essa lembrança.

As donas de casa treinadas nesse ambiente não tiveram nenhuma dificuldade em entender a URV. Muitas dessas crianças foram estudar economia, administração ou foram empreender. Os gerentes e comerciantes que sobreviveram fizeram carreira e se tornaram CFOs de multinacionais.

Mas, na maior parte dos casos, a hiperinflação foi uma tragédia. Os que tiveram sorte têm a responsabilidade de alimentar essa memória e trabalhar para que a desgraça da inflação não retorne.”

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