Luca Fróes/Folhapress
João Gilberto entrou no palco do teatro Castro Alves, em Salvador, pouco depois das dez horas da noite, com mais de uma hora de atraso. Devidamente ovacionado, ele se sentou no banquinho com seu violão e começou a tocar e cantar "Saudade da Bahia". Mas, na metade da canção, parou e reclamou. "Esse não foi o microfone que eu pedi."
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Diretor de palco de João Gilberto, o japonês Toshihiko Usami entrou em cena, mexeu no equipamento e salvou a noite de 5 de setembro de 2008, a última do músico nos palcos.
Ele recomeçou "Saudade da Bahia" e emendou com "Você Já Foi à Bahia?", duas canções de Dorival Caymmi –que havia morrido menos de um mês antes desse show. "Eu me lembrei de uma história. Em Roma, o rapaz chegou assim e disse para Dorival 'o ensaio é às 16h30'. Aí Caymmi disse 'eu já vim ensaiado da Bahia'", contou João Gilberto, fazendo a plateia rir.
O criador da bossa nova, que morreu em 2019, faria 90 anos neste mês.
Fãs de várias partes do Brasil passaram a madrugada na porta do teatro, na semana anterior, para comprar os ingressos –que se esgotaram em 40 minutos– do show da turnê de comemoração dos 50 anos da bossa nova. Na plateia, o silêncio obsequioso fazia qualquer tosse chamar a atenção. "Alguém tem um xarope?", brincou João.
Em alguns momentos, o músico se voltava para seus convidados de honra, que estavam nas primeiras fileiras. "Aderbal Duarte, escândalo", disse, elogiando o amigo violonista.
"Para mim, aquele negócio ali me tirou do chão, me pegou de surpresa", conta Duarte. Depois do show, João falou com ele. "Eu preparei tanta coisa para dizer sobre você, mas na hora fiquei nervoso e não acertei falar nada, me desculpe", teria dito João ao amigo.
Estudioso da obra de João Gilberto há mais de 40 anos, Duarte chegou aos ouvidos do mestre por meio do conterrâneo Galvão, dos Novos Baianos. João, que o chamava de "Aderba", começou uma amizade telefônica com ele e mandava a ele discos em primeira mão, até que um dia resolveu aparecer em carne e osso.
"João me ligou à meia-noite, pedindo para eu ir até o hotel em que estava Otávio Terceiro [braço direito dele], para pegar uma encomenda àquela hora, antes que Otávio viajasse. Saí de bermuda e chinelo mesmo. Quando subi com minha mulher, Otávio nos recebeu e fez uma ligação. Logo depois, toca a campainha. Era João Gilberto, que entrou de braços abertos e disse 'gostou da brincadeira, Aderba?'."
"Eu vim aqui cantar, mas qual é o baiano que não sabe cantar? Não tem nada demais", brincou João no início do show. "João já cantava tudo equalizado, a altura do violão e a altura da voz. Aí que eu fui entender porque ele ficava irritado com o microfone", conta Duarte.
Achando que o volume do som estava muito baixo, um espectador ousou gritar "aumenta o som!". João ironizou e replicou. "Aumenta o som? É assim mesmo." Ele também fez a tradicional reclamação de "um ventinho na cabeça", mas manteve o bom humor. "Olha, eu canto por esse mundo todo, mas a Bahia é diferente. Eu fico até nervoso", disse, antes da canção "Treze de Ouro".
Antes de começar "Acalanto", João disse que ia tentar não se emocionar para conseguir cantar. Na plateia, lágrimas eram derramadas em vários momentos da apresentação. "Eu vi muita gente que estava visivelmente afetada por estar ali, mas de forma positiva", diz o jornalista Marcos Casé. "A relação dele com o público era bem íntima."
No bis, João atendeu a um pedido da plateia e tocou "Coqueiro Velho", encerrando o setlist de 35 músicas com "Garota de Ipanema". Depois de duas horas e 17 minutos de apresentação, ele foi embora para nunca mais voltar.
Os shows que João Gilberto faria em novembro de 2008, no Japão, foram desmarcados por problemas de saúde do cantor. Em 2011, uma turnê de comemoração de seus 80 anos chegou a ser anunciada, mas foi cancelada pelo mesmo motivo. Em julho de 2019, o criador da bossa nova morreu aos 88 anos.
A apresentação no teatro Castro Alves foi o último ato do baiano de Juazeiro nos palcos. "Foi muito sensacional aquele dia. A despedida foi na terra que ele mais amava", afirma Aderbal Duarte.
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