Salvador Nogueira/ Folhapress
Sua pesquisa abriu caminho para transformar a mecânica quântica em uma teoria contraintuitiva que explica o mundo do muito pequeno em potenciais aplicações práticas do dia a dia. Mas Serge Haroche alerta: ainda há mais hype do que realidade no desenvolvimento de um computador quântico de uso geral, algo que vem sendo propagado por gigantes da tecnologia.
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Vencedor do Prêmio Nobel em Física de 2012, o pesquisador francês (nascido no Marrocos na época em que era uma colônia francesa), hoje com 79 anos, vem ao Brasil numa parceria entre a Academia Brasileira de Ciências e a Nobel Prize Outreach, para conversar com estudantes no Rio de Janeiro -na UERJ, nesta segunda (15), e em São Paulo -na USP, na quarta-feira (17).
A proposta de um computador quântico tem um quê de revolucionário e pode, caso seja concretizada, realizar cálculos impossíveis por máquinas tradicionais. Enquanto hoje todos os computadores são baseados em bits, que só podem codificar 0 ou 1, futuras máquinas quânticas poderiam usar as peculiares propriedades das partículas elementares para processar informação. Pelas leis da mecânica quântica, elas podem codificar vários estados ao mesmo tempo (os chamados qubits, ou quantum bits), em tese viabilizando aplicações inviáveis por outros meios.
"É o aparelho que faz todas as pessoas sonharem, parece ser um tipo de Santo Graal para o público. Mas acho que ainda estamos muito longe", diz o pesquisador. "É bom que grandes empresas, que têm muito dinheiro para gastar, como Google e Microsoft, façam isso, mas sem supervalorizar muito o que estão fazendo -o que acho que é um pouco o caso. No momento é mais um jogo de relações públicas do que de ciência real, na minha opinião."
Quando realizou seus primeiros trabalhos demonstrando a viabilidade de aprisionar fótons (partículas de luz) individuais e medir sua interação com átomos, nos anos 1970, ele estava apenas tentando confirmar estranhas predições da mecânica quântica. "Nós nem sabíamos que havia a possibilidade de fazer ciência da informação quântica. Na verdade, aprendemos sobre isso uns dez anos depois de começarmos", conta.
Hoje, diversas tecnologias, desde instrumentos para medição de alta precisão até os computadores quânticos, passando por relógios mais precisos que os atuais atômicos, estão em franco desenvolvimento -e algumas já se aproximam da maturidade.
Antes de vir ao Brasil, Haroche conversou por videoconferência com a Folha e contou o que mais o empolga, no mundo quântico e em outras áreas da ciência. Confira a seguir os principais trechos da entrevista.
Pergunta - O senhor está vindo para o Brasil para falar com estudantes brasileiros. Qual a principal mensagem que planeja trazer?
Serge Haroche - Vamos falar sobre ciência e a importância dela no mundo de hoje. Temos muitos desafios e precisamos dela para resolver os problemas que enfrenta a humanidade. Mas não fazemos ciência apenas por essa razão. Fazemos ciência também porque somos curiosos. E acho que isso é uma coisa muito importante. Temos que desenvolver a ciência como parte da cultura, da criatividade, inventividade.
P. - Falando em ciência, o sr. trabalha com fenômenos quânticos há várias décadas, onde ocorrem as coisas mais estranhas e bizarras que podemos ver na natureza. Após tantas décadas, você se acostumou à estranheza do mundo quântico?
S. G. - Sim, claro que em algum momento nos acostumamos à estranheza, porque nós a entendemos cada vez melhor. Sabemos que a língua que temos que usar para entendê-la é a língua da matemática. Mas isso fica bem longe da nossa intuição. Enquanto fazemos experimentos, tentamos usar essas ferramentas para fazer coisas interessantes e úteis, pensar em possíveis aplicações, e nos acostumamos. São as chamadas novas tecnologias quânticas, e há muito progresso sendo feito.
P. - Vamos falar um pouco sobre sua pesquisa e o que vem com ela. Quando o sr. começou a isolar fótons individuais para estudo, estava fazendo algo para entender a natureza e testar as previsões da teoria. Mas hoje estamos falando de aplicações práticas derivadas da mecânica quântica. Como vê o progresso desses experimentos em direção à tecnologia?
S. G. - Você está certo em frisar que quando comecei a fazer esse trabalho com o meu time de pesquisa, há muito tempo, nós estávamos interessados em questões básicas. Nós queríamos saber se seria possível enxergar um fóton sozinho e deixá-lo interagir com um átomo sozinho, e olhar os efeitos fundamentais relacionados a isso. Nós nem sabíamos que havia a possibilidade de fazer ciência da informação quântica. Na verdade, aprendemos sobre isso uns dez anos depois de começarmos.
Aprendemos que o que estamos fazendo tem uma conexão com a informação quântica. O fato de que você poderia codificar informação em átomos ou fótons e olhar o que poderia ser feito. E então, claro, o campo se desenvolveu muito fortemente. Eu diria que começou nos anos 1990, e agora estamos na terceira década, talvez até mesmo na quarta década, desse tipo de pesquisa;.
P. - Quais aplicações hoje chamam mais atenção?
S. G. - Há a metrologia quântica, o fato de que você pode usar esse conceito para fazer medições com uma sensibilidade e acurácia muito melhores que com aparelhos clássicos. E esse domínio de metrologia quântica está muito ativo, e talvez seja o mais concreto agora.
Com a metrologia quântica você pode medir os campos elétricos e magnéticos com maior precisão, pode usar interferência atômica para fazer giroscópios e gravímetros, medindo o campo gravitacional da Terra e a variação desse campo gravitacional com alta precisão. E isso é algo que muitas empresas, incluindo empresas de startup muito ativas, estão fazendo.
Outro domínio é a comunicação quântica, o fato de que você pode compartilhar emaranhamento entre diferentes dispositivos, muito distantes um do outro. E isso pode ser uma forma de fazer comunicação quântica, sem possibilidades de ser espionado. É a chamada criptografia quântica segura, que também está sendo desenvolvida.
O terceiro campo, no qual minha equipe ainda está envolvida e que eu acho muito promissor, é o das simulações quânticas. Começa com átomos avulsos, como fizemos nos experimentos, mas agora podemos manipular átomos avulsos individualmente, podemos enganá-los em dispositivos ópticos, e você pode fazer isso para um enorme número de átomos. E desse jeito, o que você faz é simular estruturas atômicas. Por exemplo, algumas pessoas pensam que você poderia fazer esse tipo de pesquisa para sintetizar materiais supercondutores de altas temperaturas. Você também pode sintetizar artificialmente moléculas complexas, que seriam interessantes na química ou mesmo na indústria farmacológica.
P. - E os famosos computadores quânticos?
S. G. - Claro, esse é o aparelho que faz todas as pessoas sonharem, parece ser um tipo de Santo Graal para o público. Mas acho que ainda estamos muito longe, porque, para construir um computador quântico, você deve ser capaz de controlar partículas avulsas, e a interação entre partículas avulsas com um nível de acurácia que ainda estamos muito longe de alcançar.
E o que eu não gosto muito é do fato de que nesse tipo de pesquisa há muito hype, muito esforço de relações públicas sobre isso, muitas pessoas chamam de computadores quânticos dispositivos que têm apenas um ou dois qubits, o que é muito longe de ser uma máquina útil.
Outro perigo é que muitos formuladores de políticas e governos assumem que esse tipo de pesquisa tem de ser protegida e secreta, e há problemas agora com a comunicação livre entre pesquisadores e países. Acho que é um erro, porque ainda estamos no nível da pesquisa básica.
P. - O sr. acha que Google e outras empresas que afirmam ter feito computação útil com máquinas quânticas estão exagerando?
S. G. - Sim, acho que estão muito longe de ter um algoritmo útil funcionando. O que eles fizeram foi manipular, sem fazer correções, uns dez ou até uma centena de qubits, e eles mostraram que esse sistema se comporta de forma quântica, que não pode ser replicado por um sistema clássico.
É bom que grandes empresas, que têm muito dinheiro para gastar, como Google e Microsoft, façam isso, mas sem supervalorizar muito o que estão fazendo -o que acho que é um pouco o caso. No momento é mais um jogo de relações públicas do que de ciência real, na minha opinião.
P. - Outra coisa que intriga muito sobre as tecnologias quânticas são os relógios quânticos, por causa do potencial de medir pequenas mudanças no espaço-tempo. Poderíamos unir a relatividade geral e a mecânica quântica através de dispositivos como esses, usando-os para melhor entender o que poderia ser a gravidade quântica?
S. G. - Você está certo. Não falei sobre isso ainda, mas acho que talvez o mais impressionante progresso que temos visto nas últimas décadas é o desenvolvimento dos relógios ópticos, que estão medindo a frequência de uma transição óptica que é cinco ordens de magnitude menor que a microfrequência usada em relógios atômicos anteriores, como os que usamos no sistema GPS.
Enquanto os relógios do GPS têm uma precisão de um nanossegundo por dia, aqui temos um nível de um femtossegundo por dia. Os do GPS mantinham o desajuste no tempo em um segundo a cada milhão de anos, e agora são menos de um segundo no tempo de vida do Universo [13,8 bilhões de anos].
E com esses relógios, meus colegas em Boulder testaram o efeito gravitacional [sobre o tempo] com uma diferença de um milímetro. Se você mover o relógio para cima e para baixo no campo gravitacional da Terra, em um milímetro, você vê a diferença. Isso significa que, na verdade, o tempo é diferente no topo e no fundo do mesmo relógio. E parece um pouco como os relógios distorcidos que Salvador Dalí pintou há um século, tentando ilustrar o princípio da relatividade.
P. - Falamos um pouco sobre hype e gostaria de ir um pouco mais longe, porque não sei se isso acontece na Europa, mas aqui no Brasil é muito comum ver pessoas usando o mundo quântico como algo para promover coisas como medicina quântica, educação quântica, psicologia quântica Isso o preocupa?
S. G. - É ridículo. Eu estou preocupado com todas as coisas que são ataques à ciência. Um tipo de ataque à ciência é, claro, teorias de conspiração, notícias falsas, esse é um aspecto. E o outro aspecto é esse tipo de coisa que você menciona, charlatanismo. Porque há algo "misterioso" sobre a física quântica, há algumas pessoas que acreditam que a física quântica explica tudo, como transmitir pensamentos entre pessoas, curar câncer, todo tipo de coisa que é ridícula e que não tem nada a ver com isso.
P. - O que podemos fazer a respeito?
S. G. - Não sei, acho que a solução a todos esses problemas é, claro, uma melhor educação, para ter pessoas que são menos influenciadas por essas coisas. Você precisa de educação contra as notícias falsas, você pode estender o que você diz sobre o fato de que há muitas pessoas que não acreditam nas vacinas, e há uma teoria da conspiração contra a vacina, que é prevalente, e que é, eu acho, pior do que o que você diz.
Os loucos que dizem que você pode fazer qualquer coisa com a física quântica, eu acho, são menos perigosos do que as pessoas que são negacionistas da vacinação. E eu iria além disso, acho que a falta de educação entre os formuladores de política, as pessoas que estão no comando dos governos, no comando dos ministérios, a maioria do tempo não tem ideia de ciência. Isso se reflete sobre o tipo de políticas que eles estão dispostos a implementar, e é um problema.
P. - Para encerrar, gostaria de perguntar o que, em tudo que se fala sobre ciência, o empolga mais neste momento?
S. G. - É difícil dizer. Eu acho que há algo que está me intrigando, e algo que está me empolgando. Eu fico intrigado, é claro, como todos os cientistas, com esse problema sobre o que é energia escura, o que causa a aceleração da expansão do Universo. O que sabemos, realmente, em cosmologia, que ainda é uma grande caixa-preta, por enquanto. Há muitas observações, há teorias que, mais ou menos, explicam as observações, mas ainda não temos um tipo de modelo, um tipo de modelo padrão para a cosmologia que responda por tudo isso. Esse não é meu campo, mas gostaria de saber mais sobre isso.
Outro campo que me fascina é a busca pela vida em exoplanetas. Nós encontramos muitos, milhares de exoplanetas, alguns deles estão na faixa de distância da estrela que faz com que alguma forma de vida seja possível. E eu acho que vamos aprender muito sobre esse desenvolvimento da vida. Não estou falando de vida inteligente, mas de diferentes formas de vida. E eu acho que isso é fascinante, e acho que é uma pergunta muito profunda, a questão do nosso lugar no Universo.
Outra fronteira é entender melhor o cérebro humano, mas isso é completamente diferente, e nesse domínio a física é apenas um instrumento. O desenvolvimento de máquinas de ressonância magnética é um problema físico, mas é apenas um instrumento para entender coisas. Há muitos problemas interessantes e muitas razões por que é interessante ficar vivo o máximo tempo possível, para ver se há novos desenvolvimentos, novas coisas importantes acontecendo.
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