Como morte de Matthew Perry revelou a 'terra sem lei' da cetamina em Hollywood

Publicado em 30/08/2024, às 21h45
Foto: Reprodução/Friends -

BBC News

Ao subir na jacuzzi do jardim, com vista para as montanhas de Santa Mônica, na Califórnia (EUA), o ator Matthew Perry (1969-2023) disse as palavras que acabaram causando sua morte: "Injete em mim uma dose grande."

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A "dose grande", como revelariam as investigações, era uma dose de cetamina, um anestésico e alucinógeno vendido com receita médica que ficou popular pelos seus usos não recomendados, para o tratamento de depressão e ansiedade. Era a terceira injeção de Perry naquele dia.

Horas depois daquela dose fatal, o ator da série Friends (1994-2004) foi encontrado na jacuzzi, com o rosto para baixo. Os médicos o declararam morto no local e o legista concluiu que a causa da morte foi a cetamina.

Os detalhes sobre o último dia de vida de Perry, em 28 de outubro de 2023, foram revelados nos autos do processo que se seguiu à investigação policial que indiciou cinco pessoas em relação à sua morte.

Os documentos fornecem uma análise profunda das autoridades sobre sua dependência de drogas, que ele enfrentou por décadas, e uma noção sobre a rede de fornecimento de cetamina em Hollywood.

Médicos e especialistas declararam à BBC que o aumento da popularidade da cetamina nos últimos anos fez o mercado explodir. As clínicas de cetamina e os serviços online que oferecem fácil acesso a receitas da droga se multiplicaram, sem falar no crescente mercado de drogas ilícitas.

"É superfácil [conseguir], com ou sem receita", declarou à BBC o presidente do Conselho Norte-Americano de Médicos Especializados em Cetamina, David Mahjoubi. "Tenho celebridades que conseguem receita comigo. É superfácil, não há dificuldade nenhuma."

Rede clandestina

As autoridades federais norte-americanas declararam que suas investigações sobre a morte de Perry descobriram uma "extensa rede criminosa clandestina" de fornecedores da droga. Eles distribuem grandes quantidades de cetamina em toda a cidade de Los Angeles, na Califórnia (EUA).

Documentos federais detalham os últimos meses de vida de Perry e como seus tratamentos de depressão e ansiedade em uma clínica especializada em cetamina – onde um médico administrava a droga e monitorava os efeitos colaterais – se transformaram em uma dependência que o levou a procurar "médicos inescrupulosos" e uma rede de comerciantes ilegais.

Perry falava abertamente sobre seus problemas com dependência, que duraram décadas. Eles remontam até mesmo à época em que ele interpretava o personagem Chandler Bing em Friends. Bastava que uma droga entrasse na sua vida e ele parecia ficar dependente.

Mas, na sua autobiografia Amigos, Amores e Aquela Coisa Terrível: As Memórias do Astro de Friends (Ed. BestSeller, 2023), o ator declara que havia finalmente abandonado as drogas. Uma mulher disse aos investigadores no escritório do médico legista que ela acreditava que ele estivesse limpo há 19 meses.

Mas, em algum momento naquele período, Perry começou a receber terapia de infusão de cetamina. E os especialistas dizem que o seu histórico o levou a ficar rapidamente dependente da droga.

A investigação federal descobriu que, cerca de dois meses antes da sua morte, Perry comprou dezenas de ampolas de cetamina, pagando milhares de dólares. E, nos três dias que antecederam sua morte, seu assistente injetou cetamina no ator pelo menos seis vezes por dia.

Cinco pessoas foram presas durante a investigação. Três delas já se declararam culpadas de conspiração. Ao todo, o grupo enfrenta 23 acusações relacionadas à morte de Perry.

Kenneth Iwamasa

Assistente pessoal que morava com Perry, Iwamasa se declarou culpado de uma acusação de conspiração para distribuir cetamina, seguida de morte.

Ele admitiu ter ajudado Perry a conseguir cetamina e injetado a substância repetidamente no ator, incluindo a dose que o matou.

Salvador Plasencia

Médico acusado de fornecer a Perry grandes quantidades de cetamina e injetar a droga em diversas ocasiões, incluindo em um estacionamento público. Ele também é acusado de ensinar seu assistente a injetar as doses.

Plasencia se declarou inocente de todas as acusações contra ele, em relação à morte de Matthew Perry.

Mark Chavez

Médico que se declarou culpado de uma acusação de conspiração para distribuir cetamina. Ele admitiu ter vendido cetamina para Plasencia, incluindo drogas que ele próprio havia desviado de uma clínica especializada em cetamina.

Jasveen Sangha

Identificada pela polícia como a "rainha da cetamina", é uma suposta comerciante ilegal que, segundo os autos do processo, era conhecida por trabalhar com celebridades e clientes de alto padrão. Ela é acusada de fornecer as drogas que acabaram matando Perry.

As autoridades realizaram uma busca na casa de Sangha e descobriram o que chamaram de "empório de venda de drogas", com dezenas de ampolas de cetamina e milhares de comprimidos.

Ela se declarou inocente de todas as acusações, incluindo de conspiração para distribuir cetamina e distribuição de cetamina seguida de morte.

Eric Fleming

Intermediário que, segundo as autoridades, conseguia as drogas de Sangha e as distribuía para Perry e seu assistente.

Ele se declarou culpado de uma acusação de conspiração para distribuir cetamina e de uma acusação de distribuição de cetamina seguida de morte.

'Sim, senhor'

Diversos médicos e especialistas que conversaram com a BBC para esta reportagem comentaram o relacionamento tóxico entre a celebridade e a medicina.

"O tratamento VIP, muitas vezes, não é o melhor tratamento", declarou à BBC o diretor do Programa de Pesquisa sobre Depressão da Universidade Yale, nos Estados Unidos, Gerard Sanacora. "Os médicos também são seres humanos e, apesar de fazerem o juramento de Hipócrates, nem todos o respeitam."

Sanacora reconhece que os médicos podem "perder a perspectiva quando têm um cliente VIP", com suas promessas de convites para grandes festas ou doações para programas de pesquisa ou entidades beneficentes.

Mahjoubi dirige duas clínicas especializadas em cetamina na Califórnia, incluindo uma em Los Angeles. Ele disse à BBC que, quando celebridades são seus pacientes, pode ser difícil sustentar os limites normais.

Ele afirmou ter tratado de uma celebridade não identificada, a quem forneceu o número do seu celular para caso de emergência.

O paciente vinha "tentando constantemente me pedir favores – 'refaça minha receita' – por exemplo, na noite de domingo".

"Eu disse a ele: 'por favor, me escreva por e-mail sobre qualquer assunto médico' e o bloqueei", contou Mahjoubi.

O médico também afirmou ter presenciado como a cetamina passou a ser uma droga de festas de uso comum entre as celebridades. Elas acham que a cetamina é mais segura, por exemplo, do que a cocaína, que pode ser associada a drogas mortais, como fentanil.

Outro médico da região de Los Angeles, que administra diversos centros de gestão de dores – outra condição para a qual a cetamina é indicada – chamou o aumento de tratamentos com cetamina de nova "terra sem lei".

Ele falou à BBC em condição de anonimato, para poder discutir abertamente a popularidade da cetamina, detalhando os relacionamentos diferenciados que ele presenciou entre médicos e algumas celebridades.

Todos querem ser um "médico das estrelas por aqui", explicou ele.

Alguns chegam a oferecer tratamentos gratuitos ou fecham suas clínicas ou consultórios para maior privacidade – tudo na esperança de que a celebridade poste sobre seu tratamento nas redes sociais.

"Existem celebridades que são passadas de um médico para outro e são disputadas", acrescenta o médico. Ele chama esta situação de "relacionamento estranho" e modelo comercial problemático.

Muitos desses astros estão "acostumados a ouvir 'sim'", ele contra. "Caso contrário, eles simplesmente irão para outra pessoa que irá dar o que eles querem."

Ser rodeado por pessoas dizendo "sim, senhor" pode trazer consequências para toda a vida, afirma Garrett Braukman, diretor-executivo da Alta Centers, um centro de tratamento de reabilitação e desintoxicação de Hollywood. Cerca de 20 a 30% dos seus pacientes trabalham na indústria cinematográfica.

Ele afirma que observou um aumento da dependência de cetamina, mas sem ultrapassar as substâncias mais comuns, como álcool, cocaína e opioides.

"As pessoas costumam entrar na arte devido às experiências que elas sofreram – e, muitas vezes, são traumas", declarou Braukman.

Acrescente-se a isso a cultura das drogas razoavelmente "normalizada" em Los Angeles e o acesso às celebridades e temos "a receita perfeita para a dependência", declarou ele.

Uma nova epidemia de receitas?

Uma rápida busca no Google por "receita de cetamina" revela diversos anúncios de empresas online promovendo os benefícios da "terapia psicodélica" para o tratamento de doenças que vão da depressão e ansiedade até a doença de Lyme e as dores crônicas.

Algumas dessas empresas oferecem serviços de assinatura por apenas US$ 100 (cerca de R$ 556) por mês para conseguir a droga.

Um dos problemas é que a cetamina não é aprovada para o tratamento destas condições.

A Administração de Alimentos e Drogas dos Estados Unidos (FDA, na sigla em inglês) é a agência reguladora responsável pela aprovação de medicamentos e por garantir sua segurança, eficácia e rotulagem adequada no país. Ela só aprovou o uso de cetamina para anestesia geral, sob cuidados médicos.

Em 2019, a FDA aprovou um medicamento na forma de spray nasal, feito com cetamina, para o tratamento da depressão, desde que a droga seja adotada em conjunto com terapia e administrada sob a supervisão direta de um médico.

O médico também deve acompanhar o paciente por duas horas após a dosagem, para verificar possíveis efeitos colaterais, como alucinações, desconexão da realidade e aumento da pressão arterial.

Mas especialistas afirmam que as clínicas online exploraram uma área cinza das regulamentações, oferecendo diretamente aos consumidores receitas de cetamina para usos não indicados.

As regulamentações de publicidade da FDA se aplicam às companhias farmacêuticas que "fabricam, distribuem ou embalam" os produtos, mas elas não atingem novas start-ups, como as clínicas de "bem-estar" online.

"É algo muito complexo – é quase uma brecha", declarou Sanacora à BBC.

Duas semanas antes da morte de Perry, a FDA alertou os consumidores sobre os usos não recomendados de cetamina. A agência observou que "a falta de monitoramento de eventos adversos, como sedação e dissociação, pelos fornecedores de assistência médica locais pode colocar os pacientes em risco".

Médicos e especialistas afirmam que o mercado pareceu florescer durante a pandemia, quando se proliferaram as clínicas, serviços de saúde online e a assistência doméstica.

O médico de gestão de dores que conversou com a BBC sob condição de anonimato declarou que algumas dessas empresas são estruturadas de tal forma que elas "não querem que as pessoas melhorem". Elas pretendem mantê-las com assinaturas de receitas para garantir a entrada contínua de dinheiro.

"Saiu de controle", afirma ele.

Sanacora estudou e pesquisou como a cetamina pode ser usada no tratamento da depressão. Ele afirma que existem muitas evidências sobre a eficácia da droga.

Testes com a substância estão atualmente em andamento, para verificar os benefícios do tratamento com cetamina para depressão resistente a outros tratamentos.

Mas ainda existem muitos pontos desconhecidos sobre sua forma de funcionamento e seus riscos, como convulsões e morte.

Sanacora afirma que não se sabe ao certo se as overdoses aumentaram, já que o governo federal não acompanha as mortes relacionadas à cetamina, como faz para as overdoses de cocaína, heroína e opioides. Às vezes, a droga nem é testada durante a autópsia.

"Existem muitas coisas que realmente não sabemos", segundo ele.

A chefe da Agência de Controle de Drogas dos Estados Unidos (DEA, na sigla em inglês), Anne Milgram, declarou que a agência está investigando os médicos que receitam quantidades excessivas dessas drogas ou as prescrevem sem necessidade.

Em entrevista à CBS News, emissora jornalística parceira da BBC nos Estados Unidos, ela comparou a cetamina e seu uso no caso Perry com o início da epidemia de opioides nos Estados Unidos.

"Esta, infelizmente, é uma sequência trágica que já observamos, quando nos lembramos do início da epidemia de opioides, quando muitos americanos ficaram dependentes de substâncias controladas nos consultórios médicos e com profissionais de saúde, levando a dependência para as ruas."

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