Como “Mickey paraguaio” venceu a Disney na justiça e se tornou um sucesso nacional

Publicado em 22/09/2024, às 17h50
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Uma delas é uma gigante que é proprietária de parques temáticos, produtos e filmes, acumula 150 estatuetas do Oscar, conta com 225 mil colaboradores e tem uma receita anual de quase US$ 90 bilhões.

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A outra é uma empresa familiar de terceira geração, que tem 280 colaboradores e embala molho de pimenta, soja, balas coloridas, uma erva chamada cavalinha, seis variedades de panetone e sete tipos de sal, todos destinados para venda em supermercados no Paraguai.

No entanto, Mickey é um nome tão conhecido como a própria Disney no pouco turístico país sul-americano de 6,1 milhões de habitantes. Na verdade, alguém que venha do exterior poderia achar que as duas empresas são sócias.

A equipe da Mickey veste uniformes vermelhos e utiliza um slogan voltado à família: “A obrigação de ser bom!”

Além disso, existe ainda o rato de desenho animado — também chamado de Mickey e indistinguível do Mickey Mouse — cujas icônicas orelhas circulares enfeitam os portões da fábrica da empresa, seus caminhões, bem como um mascote muito requisitado para participar de casamentos no Paraguai.

Mas não se engane’, disse Viviana Blasco, 51 anos, sentada à sua mesa na capital, Assunção, cercada por itens de papelaria, camisetas e canecas de café estampadas com a marca Mickey.

Existe o “Mickey da Disney e o Mickey paraguaio, o nosso Mickey”, explicou Blasco, que administra o negócio com seus outros quatro irmãos.

Ainda assim, se o Mickey paraguaio parece muito com o da Disney, isso pode não ser mera coincidência.

“Os paraguaios são muito criativos — poderia até se dizer um tanto desonestos — quando se trata de propriedade intelectual.”

Fábricas produzem roupas falsificadas da Nike, Lacoste e Adidas. No ano passado, as autoridades educacionais do Paraguai alertaram que a “Universidade Harvard do Paraguai,” localizada em Ciudad del Este — a segunda maior cidade do país e um berço de falsificação — estava concedendo diplomas médicos falsos. (A instituição não tem vínculo algum com a renomada Universidade Harvard.)

Em um índice elaborado pela Aliança de Direitos de Propriedade (Property Rights Alliance), um instituto de pesquisa com sede em Washington, D.C., o Paraguai ocupa a 86ª posição entre 125 países, com uma pontuação de 1,7 em uma escala de 0 a 10, no quesito proteção de direitos autorais.

Mas a Mickey, empresa da família Blasco, sobreviveu a várias ações movidas pela Disney. É uma instituição notavelmente estimada, que celebra a história, a gastronomia e a identidade nacional do Paraguai com grande carinho. Blasco afirma que a saga da Mickey começou em 1935.

O Paraguai havia recentemente enfrentado um intenso conflito com a Bolívia pelo Chaco, uma região de matagais ressecados pelo sol. Uma conflagração anterior, a Guerra da Tríplice Aliança (1864-70), viu a Argentina, o Brasil e o Uruguai exterminarem metade da população do Paraguai.

O país ainda estava se recuperando de ambos. O avô de Blasco, Pascual, filho de imigrantes italianos, identificou uma oportunidade para espalhar um pouco de alegria — e lucrar. Ele abriu uma pequena loja onde vendia frutas e sorvetes caseiros. Ela era chamada de Mickey. Exatamente de onde surgiu a ideia ainda é “um mistério”, explica Blasco.

Mas ela diz que Pascual costumava passar férias em Buenos Aires, a cosmopolita capital da Argentina, conhecida por seus cinemas que exibiam filmes internacionais. Naquela época, Mickey Mouse fazia sua estreia no cinema, incluindo em ‘The Gallopin’ Gaucho’ (O Gaúcho Galopante) (1928).

“Ele deve ter visto o famoso rato em uma de suas viagens”, analisa Blasco.

Seja qual for sua origem, Mickey foi um sucesso. Alguns anos depois, Pascual inaugurou a Sorveteria, Café e Confeitaria Mickey.

Em 1969, a Mickey já comercializava arroz, açúcar e bicarbonato de sódio em embalagens agora decoradas com o rato homônimo. Em 1978, a empresa se mudou para uma fábrica coberta por uma árvore de Natal iluminada de 62 metros. Blasco nega que sua família tenha se apropriado da propriedade da Disney.

“Nós não roubamos o mascote. Construímos uma marca ao longo de muitos anos. A Mickey cresceu paralelamente ao Walt Disney e se tornou profundamente arraigada na cultura paraguaia”, explica Blasco.

Essa afinidade estava evidente em diversas lojas que vendem produtos da Mickey em Luque, um subúrbio operário de Assunção.

O mascote do Mickey estava tirando fotos com fãs, dentre os quais a enfermeira pediátrica Lilian Pavón, 54. “Sou fanática pelos produtos da Mickey”, disse, elogiando, em especial, a farinha de rosca e o orégano da empresa.

Mas seus sentimentos pelo roedor de feltro de 2,13 metros vão além dos condimentos, acrescentou, enquanto Mickey cumprimentava os compradores com soquinhos e distribuía biscoitos em formato de anel chamados chipa.

Quando crianças, ela e suas amigas colecionavam estojos, cadernos e adesivos do Mickey Mouse. Elas sonhavam em visitar a Disneylândia ou o Walt Disney World. Mas o custo de voar para Anaheim, Califórnia, ou Orlando, Flórida, impossibilitava a peregrinação, mesmo depois de adultas, disse Pavón.

Fico feliz só de ver o Mickey em lugares como este’, acrescentou, enquanto passava pelo corredor do açougue do El Cacique, um supermercado popular.

O Mickey ressoa com o sentimento de nostalgia dos paraguaios, explicou Euge Aquino, 41, uma chef de TV e influenciadora que utiliza os ingredientes da marca para preparar receitas caseiras, como o “pastel mandi’o” (empanadas de mandioca e carne bovina).

O Paraguai não é conhecido por sua alta gastronomia, reconheceu. É um lugar plano, quente e muito distante das tendências gastronômicas estrangeiras.

“Nosso clima é muito difícil, então você cultiva e come o que dá por aqui”, analisou Aquino.

O que mais dá é mandioca e milho, que é sagrado para o povo nativo guarani. Mas o que falta nos pratos locais em glamour é compensado em sabor e significado, disse.

Os paraguaios ainda amassam amido de mandioca e moem milho para fazer chipa durante a Semana Santa. Eles infundem sua erva-mate com ervas aromáticas, como boldo, Tê-de-burro e begônias. Eles recheiam suas sopas, ensopados e caçarolas com anis, açafrão, cravo, noz-moscada, páprica e coentro, tudo fornecido pela Mickey em sachês do tamanho de uma porção.

“Um momento, um sabor, um aroma é uma memória”, ponderou Aquino, enquanto dourava em seu forno uma “sopa paraguaya”, um caldo esponjoso feito com farinha de milho da Mickey. “E essa memória pode gerar tantas emoções. É a comida da sua mãe ou da sua avó.

Segundo ela, a popularidade da Mickey também tem muito a ver com o mascote que distribui doces do lado de fora dos portões da fábrica todo Natal, uma tradição que remonta a 1983.

Aquino lembra que certa vez ficou arrepiada ao esperar do lado de fora da fábrica durante a festividade anual no início da década de 1990.

“Não existiam redes sociais, não existiam celulares, não existia nada”, lembra Aquino. “Então, de repente, aparece o Mickey e você fica tipo, ‘Uau!’ Era uma loucura.”

“Ele é um verdadeiro astro”, disse.

Hoje reina uma “coexistência pacífica” entre o Mickey e seu sósia norte-americano, analisa Elba Rosa Britez, 72, advogada da empresa menor.

Essa trégua foi conquistada com muito esforço.

Em 1991, a Disney entrou com uma ação de violação de marca registrada no Ministério de Negócios e Indústria do Paraguai, que foi rejeitada. A empresa então moveu uma ação judicial, mas em 1995, um tribunal de marcas registradas decidiu a favor da Mickey.

A Disney recorreu novamente, levando a disputa ao mais alto tribunal do Paraguai.

Lá, um juiz concordou que os paraguaios poderiam facilmente confundir o Mickey da Disney e o Mickey paraguaio.

Mas a Disney não contava com uma “brecha legal”, explicou Britez.

A marca Mickey estava registrada no Paraguai desde pelo menos 1956, e os descendentes de Pascual a renovam desde então, sem qualquer protesto por parte da multinacional.

Em 1998, a Suprema Corte do Paraguai emitiu sua decisão final. Após décadas de uso ininterrupto, a Mickey adquiriu o direito de ser Mickey.

“Pulei de alegria”, lembra Britez.

A imunidade legal da Mickey no Paraguai pode não se estender à venda de seus produtos no exterior, reconheceu Blasco. “Nós nunca tentamos.”

A empresa paraguaia que representou a Disney não quis comentar o assunto. Diretores da Disney não responderam a pedidos de comentário. Durante um recente feriado nacional, o homem que veste a fantasia do mascote Mickey estava se aquecendo em um contêiner de metal com ar-condicionado, localizado dentro da fábrica da empresa, que também funciona como seu escritório.

Blasco pediu ao The New York Times que não revelasse a identidade de Mickey ao público paraguaio para preservar um pouco da “magia” por trás do mascote.

“Ver os sorrisos estampados nos rostos das crianças não tem preço’, disse o mascote, antes de ajustar sua gravata borboleta e seguir em direção ao seu público admirador.

“Mickey!” gritavam. “Mickey!”

Mickey posou para fotos, espalhou doces nos carrinhos de bebê e passou pipoca pelas janelas de carros para crianças de olhos arregalados. Motoristas de ônibus buzinaram. Uma equipe de construção de estradas acenou. Um trabalhador se inclinou para fora de um caminhão de lixo, ergueu o punho e gritou: “Ei, Mickey!”

Alguns dos que fizeram fila para conhecer o mascote disseram que o triunfo de Mickey na batalha de Davi contra Golias contra a Disney os encheu de orgulho nacional.

“É legal”, riu a dona de casa Maria del Mar Caceres, 25. “Pelo menos vencemos em alguma coisa.”

Este artigo foi publicado originalmente no The New York Times.

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