Com inspiração hippie, mercado do bem-estar cresce e fatura milhões nos EUA

Publicado em 19/11/2018, às 18h28
Mercado Sagrado, que aconteceu em outubro entre as montanhas de Malibu, na Califórnia | Reprodução -

Folhapress

"As moléculas ainda estão girando", garantiu Karma olhando para meu copo de água. "É uma água muito fresca, está viva", continuou, explicando que havia sido coletada em garrafões de vidro "diretamente da nascente".

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O sabor era indiferente, mas o entusiasmo de Karma era vibrante. E ela era apenas uma das dezenas de vendedores reunidos para a quinta edição anual do Mercado Sagrado, que aconteceu em outubro entre as montanhas de Malibu, na Califórnia.

A feira trouxe músicos, chefs de comidas orgânicas, lojas de roupas e criadores das últimas tendências do mercado de bem-estar e "cura artística", variedade da medicina alternativa que deixaria muitos médicos de cabelos em pé.

Estavam lá todas as lojas das musas do movimento, como a Moon Juice de Amanda Chantal Bacon, que tem três cafés em Los Angeles. Ela vende ervas em pó apelidadas de "poeiras da lua". As mais populares são a "poeira do sexo" e do cérebro -para "melhorar foco e resistência mental, promover clareza e concentração".

Os pós, usados para misturar em sucos ou cafés, são de "superervas" e de ingredientes de nomes misteriosos como shatavari (extrato de raíz), ashwagandha (extrato de folha) e amla (extrato de fruta).

"Tomei muita chlorella", disse à Folha a cofundadora do Mercado Sagrado, a fotógrafa Heather Culp, 40, ao explicar como manteve a calma na correria para organizar a feira. Chlorella é alga em pó da marca Sun Potion, cujo site afirma "ajudar nas funções hormonais" e "negar os efeitos da quimioterapia e radiação".

Praticamente nada é aprovado pela FDA (a Anvisa americana) e Culp não vê problema. Ela garante que lê muito sobre os produtos e tratamentos que promove e é usuária de muitos deles. "Tudo vai da autenticidade do que eles estão fazendo, converso muito com todos e vejo quem está dedicado a sua missão."

Cerca de 4.000 pessoas visitaram a feira, que também contou com workshops de tarô e mediunidade, uma cerimônia do cacau e palestras sobre superalimentos.

O espírito místico holístico do Mercado Sagrado tem raízes nos hippies da Califórnia dos anos 1960, quando surgiram diversas comunidades e cultos. Hoje, os negócios da medicina alternativa movimentam US$ 30 bilhões por ano nos EUA, incluindo yoga, acupuntura, meditação, suplementos e homeopatia.

A curiosidade dos visitantes é reflexo da desconfiança na medicina tradicional, diz Culp.

"Estamos num período de trevas. Abandonamos os jeitos tradicionais de fazer as coisas, as nossas comidas, em troca de novas tecnologias", disse Culp, que não vai ao médico faz cinco anos e sonha em fazer um debate na feira sobre vacinação. "Sou contra vacina. É uma conversa longa e muito polêmica mesmo para o público daqui."

A feira aconteceu no Paramount Ranch, um antigo estúdio a céu aberto para filmes de velho oeste, com construções como estábulos e bares apenas de fachada, algo talvez revelador sobre algumas das práticas no evento.

Havia uma cabine para tirar fotografia da aura, venda de cristais dos Himalaias, cremes de rosto feitos de cinzas vulcânicas e pomadas reparadoras de sebo de búfalos. Ao lado da "água viva" de Karma, Louis vendia óculos de lentes laranjas para proteger os olhos das luzes malignas produzidas por telas de computadores.

E, claro, não poderiam faltar os ovos de pedra de jade e as ervas para vaporização vaginal, vendidas em dois estandes. "Conheça o melhor amigo da sua vagina", dizia um cartaz da loja Tulip sobre as pedras, prometendo "melhores orgasmos" e "fortalecimento da região pélvica".

O estande vendia também um banquinho de madeira para a vaporização, atividade criticada por ginecologistas por ser desnecessária e potencialmente nociva.

As duas práticas foram popularizadas por outra musa do movimento, a atriz Gwyneth Paltrow, com ajuda de seu império online Goop, portal avaliado em US$ 250 milhões. O site traz dicas de bem-estar (comida, viagens e sexo), publica entrevistas com especialistas e vende roupas, cremes, vibradores e produtos como o tal ovo vaginal.

Usando termos médicos e palavras pomposas para descrever o ovo ("cristal mágico de limpeza energética"), o site acabou processado num distrito da Califórnia e concordou em pagar US$ 145 mil em restituições. Ele ainda segue à venda por US$ 66, agora sem nenhuma descrição sobre sua utilidade.

"Um dos grandes problemas desses conselhos nada científicos é que contribuiu para a erosão do pensamento crítico, algo que estamos vendo em todos os lugares e não apenas na saúde", disse à Folha o professor de direito Timothy Caulfield, da Universidade de Alberta, e presidente do Pesquisa do Canadá em Direito e Política de Saúde.

Caulfield se especializou em desmascarar pseudociência. É autor do livro "Estaria Gwyneth Paltrow errada sobre tudo?" (2015), sobre o impacto negativo de celebridades falando sobre saúde, e estrela o seriado da Netflix "A User's Guide to Cheating Death" (guia do usuário para enganar a morte) sobre tratamentos de eficácia duvidosa, como a moda milionária dos detox de sucos.

"Muitas das coisas não fazem mal, mas há vezes que fazem de fato. Ou alguém deixa de fazer algo que funciona de verdade para tentar algo alternativo", disse. "No geral, é uma exploração do dinheiro alheio. E algo que nos distrai das coisas simples e com evidência que todo mundo deveria fazer para ser saudável."

Além da tradição hippie, o professor vê Hollywood e estrelas como Paltrow como "um megafone do marketing para estas invenções nonsense". Mas ele mantem a cabeça aberta e os pés fincados na ciência, e confessa que adorou fazer reflexologia -massagem nos pés que promete produzir efeitos pelo corpo.

"Foi uma experiência muito agradável", disse, rindo. "Dá para entender porque as pessoas gostam. Você passa tempo com indivíduos que se preocupam com você, ou que pelo menos fingem."

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