Redação
Cuidar de uma casa e de uma família requer sempre uma atenção especial, principalmente se nela estiver presente uma criança. Para dar conta dessas tarefas, as pessoas utilizam todos os sentidos. Geralmente. Mas e se fosse possível fazer tudo isso sem um deles? Há quem mostre que é possível viver, de forma independente, sem algo que julgamos extremamente necessário, a visão.
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Este é o exemplo de Daniel Nunes, de 36 anos, e Ângela Maria Almeida, de 46. Um casal de cegos que vive no município de Arapiraca, Agreste de Alagoas, tem uma filha de 4 meses, e levam a vida como uma família comum.
A vida de Daniel começou a mudar drasticamente em 2011, quando tinha 30 anos, e passou a perder a visão após a retina ter descolado enquanto ele trabalhava. Isso aconteceu porque ele nasceu com uma doença chamada ‘Síndrome de Marfan’, que provoca várias alterações no organismo.
Quando veio ao mundo, Daniel tinha os pés virados para dentro e o chamado “peito de pombo”, uma deformidade no tórax, que o fez passar por 21 cirurgias. Apesar do intenso tratamento, ele ainda ficou com uma deficiência na visão, o estrabismo convergente, que o fez usar óculos desde criança.
Ângela, a esposa, não teve o privilégio da visão desde cedo; ela já nasceu cega. Natural da cidade de Paulo Jacinto, ela vem de uma família de onze irmãos, três homens e oito mulheres, das quais quatro nasceram cegas.
Foi a criação de Ângela que proporcionou igualdade entre ela e os irmãos, fazendo-a se sentir uma pessoa com habilidades e independência, como qualquer outra. “Lá em casa, não tinha essa de ‘você não pode fazer isso porque é cega’. Quem enxergava sempre, ajudava os que não podiam”, lembra.
Daniel tem o ensino médio completo e já trabalhou em uma loja de materiais de construção. Hoje, tenta passar no Enem para cursar serviço social ou direito, e quanto isso trabalha como voluntário no Centro de Equoterapia de Arapiraca, ajudando outras pessoas com a mesma deficiência. E Ângela já possui curso superior. Ela se formou recentemente em pedagogia.
A história dos dois se encontrou após um amigo passar o telefone de Ângela para Daniel. Os dois então conversaram e saíram. Hoje são casados, há cinco anos, vivem do benefício que ela recebe desde os 25 anos, e tocam a vida muito bem, sozinhos.
“Mas como vocês fazem isso?”: casal conta como cuida da filha, recém nascida
Essa é a pergunta mais repetida pela família do Daniel até hoje. “Eles ficaram extremamente preocupados quando descobriram a gravidez. Sempre oferecem ajuda, e toda vez respondo que conseguimos nos virar”, conta.
A pequena Nínivim, de quatro meses, nasceu com a visão perfeita. (Crédito: Alysson Antônio / Rádio Pajuçara FM Arapiraca)
Ele não tinha experiência com bebês, nem quando ainda enxergava. Mas para sua sorte [e da criança], Ângela tinha. Ela cuidou dos irmãos mais novos desde pequenos, e, posteriormente, cuidou dos sobrinhos. “Aprendi tudo com eles. Na prática, a gente aprende a conhecer o cheiro da criança, se está com cólica, com fome, os sons e gestos através do tato. Tudo isso é perceptível a quem cuida”, explica.
Seja pelo tato, pela audição ou por instinto, o casal consegue cuidar da pequena Nínivim, que nasceu cem por cento saudável, com a visão perfeita, após uma gravidez de risco. “’Como vocês sabem se ela fechou os olhos?’, essa é uma das perguntas mais frequentes. Nós percebemos isso, pela respiração dela, quando conseguimos notar um princípio de ronco”, revela Daniel.
Daniel contou que tem muito medo da filha herdar a síndrome que o fez ficar cego. (Crédito: Alysson Antônio / Rádio Pajuçara FM Arapiraca)
Gravidez delicada
Como toda mulher que engravida depois dos 40, Ângela teve uma gravidez delicada. No ano de 2013, ela sofreu um aborto espontâneo, quando estava com apenas três meses de gestação. “Ela sentiu fortes dores. Quando voltamos do hospital, descobrimos que havia abortado no banheiro, após notarmos o saco com o embrião no piso”, relembra o marido.
Na segunda gravidez, Ângela conta que não sofreu nenhuma ameaça de perder Nínivim. “Tive muito medo de perder meu bebê novamente. Achava que tudo que fazia poderia por ela em risco. Mas a cada consulta, o médico me tranquilizava”, relata.
No dia do nascimento, um acompanhante filmou o momento, que foi narrado aos pais pelo obstetra. O médico teve como primeiro ato após o parto checar os olhos da criança e verificar se tinha alguma deformidade. “Tenho muito medo de que o que aconteceu comigo, aconteça a ela, pois a síndrome é algo hereditário”, confessa Daniel.
Dia a dia comum
Apesar dos medos, a família formada por pais cegos e uma bebê de 4 meses tem ultrapassado as dificuldades e vive um dia a dia como qualquer outra.
“Nós dividimos tudo. Ela [a esposa] cuida das roupas (lavar e passar), nós dividimos a comida, eu cuido de tudo que envolver facas, pois tenho mais habilidade, e ela separa as porções. Com a bebê, a gente se ajuda”, conta o marido.
Ângela contou que cuida de casa desde que morou com sua sobrinha, na época da faculdade. (Crédito: Alysson Antônio / Rádio Pajuçara FM Arapiraca)
A terapia ocupacional ajuda. Após sete meses em uma lista de espera, Daniel hoje vem aprendendo mais sobre como lidar com as atividades da vida diária, como usar os utensílios de casa, como facas, ferro de passar, máquina de lavar, etc. Tudo tem ajuda de um mapa tátil em braile.
Os conhecimentos adquiridos nesse tempo, somados às experiências da esposa, os ajudam a seguir com a vida. Sem contar que a tecnologia veio a calhar.
Graças à função ‘Talkback’, eles conseguem mexer no celular de forma simples. O item de acessibilidade faz com que o aparelho diga o que está sendo selecionado, guiando pela voz, isso permite que façam coisas desde mexer no WhatsApp, até assistir a um filme no Netflix. E através do ‘relógio falante’, eles sabem o tempo certo para cozinhar e acordar.
Nem sempre foi fácil: Daniel conta como superou a cegueira
“Estaria mentindo se dissesse que não pensei em me matar”. Essas foram as palavras de Daniel para descrever como se sentiu na época em que perdeu a visão. Não foi fácil para ele, que demorou um mês até acreditar que tinha se tornado a primeira pessoa cega de sua família; outros seis, passou em depressão.
“Chorei muito quando a ‘ficha caiu’. Minha mãe já havia morrido, meu pai estava morando em Maceió, alguns de meus irmãos me deram apoio, mas o que me ajudou mesmo foram as palestras motivacionais que uns amigos me levaram. Ali, percebi que muitas pessoas eram felizes assim”, relembra.
O tratamento continua, mesmo agora, seis anos após o diagnóstico e depois de várias cirurgias que não foram bem sucedidas. Uma médica especializada em tratar pessoas com baixa visão é quem cuida de Daniel, sempre muito interessado e determinado em se reabilitar, segundo conta a médica Alinne Ramos.
“O processo durou pouco mais de dois anos, mas o acompanhamento é contínuo, pois uma vez que o paciente está habilitado, ele passa a ser avaliado a cada seis meses através de uma consulta oftalmológica, ou antes, se acontecer algo prejudicial”, explicou a oftalmologista.
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