Folhapress
A 21ª edição do Big Brother Brasil reuniu, até agora, um combo de acontecimentos históricos na televisão brasileira. Nesta segunda edição do reality, já foram dois recordes de eliminação consecutivos, o primeiro beijo gay, o maior número de participantes negros. E, é claro, Karol Conká.
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A rapper curitibana de 34 anos fez seu nome como a maior vilã da história do programa sem que tenha passado mais de um mês dentro dele. O rótulo rendeu a ela contratos cancelados, ameaças e impressionantes 99,17% de votos pela sua eliminação, ocorrida nesta semana.
As atitudes da cantora dentro do BBB, no entanto, podem dizer mais sobre as relações sociais do mundo hoje do que sobre a sua personalidade.
Isso porque é cada vez mais comum projetarmos, em nós ou nos outros, heróis sobre-humanos que, em pouco tempo, acabam devorados pelas próprias ilusões de quem os idealizou. É o que diz o psicanalista e escritor Christian Dunker, vencedor do prêmio literário Jabuti em 2012, na categoria de psicologia e psicanálise.
"Ela entrou no programa a partir de uma posição consolidada de alguém que pratica o cancelamento como um exercício político de contrapoder, o que é comum em grupos historicamente cancelados, como as vozes negras e femininas", diz ele, que chama a ação de um ajuste de contas. "Até nas músicas [da cantora] percebemos isso. O próprio ato de tombar é uma disputa por lugares simbólicos", afirma ele em referência a letra de "Tombei", o maior hit da artista, lançado em 2015.
Essa prática mais genérica do cancelamento se revela, contudo, uma tentativa de reproduzir opressões quando vista de perto, diz o especialista. "Isso nos permite ver como o BBB mostra a nossa cultura da exclusão, da segregação", diz ele.
"A gente ri assistindo, mas rimos de uma coisa profundamente trágica, que está acontecendo na lógica do trabalho, do reconhecimento e do desejo. A negação do outro, a lacração e o cancelamento são quem produzem esse silenciamento."
Conká, assim, ingressou com a imagem de uma artista que levantou bandeiras ativistas em toda a sua carreira, e saiu com outra bem diferente, porque seu público passou a ver a artista a partir de novos ângulos, avalia Dunker.
Se por um lado ela representa vozes oprimidas, por outro, escancara agora a complexidade das relações sociais, que segundo o especialista, não são unidimensionais.
Para explicar o caso, o psicanalista lembra um dos episódios mais marcantes desta edição, a tarde de almoço em que a rapper expulsou o participante Lucas Penteado da mesa.
"Ela é uma mulher e ele é um homem, ou seja, há ali uma relação social assimétrica. Ao mesmo tempo, ela é rica e famosa, enquanto ele é um jovem que está mais identificado com os valores da periferia", diz Dunker. "A equação começa, então, a se inverter."
Segundo ele, o mesmo aconteceu quando Lucas teve sua bissexualidade questionada pela cantora e por outros participantes do reality, o que depois influenciou em sua desistência no programa.
"Tudo isso vai se desdobrando com Lumena, Gil e outras pessoas [do reality], o que pode trazer uma leitura crítica à finalidade dos movimentos sociais contemporâneos", continua. "As opressões são gramáticas cruzadas e, por isso, precisamos pensar de forma intersseccional."
Ou seja, o psicanalista defende que é necessário compreender como as diferentes camadas das nossas identidades, como raça, classe e sexualidade, entre outros aspectos, influem em nossas vidas e relações sociais.
Dunker acrescenta que a polarização política e até mesmo a pandemia do novo coronavírus estão diretamente relacionados com as atitudes dos participantes do BBB 21 e do público.
"Há uma espécie de bola pedindo para capitalizarem o desejo de culpa e de vingança que está no ar", explica.
Também segundo a psicanalista Luciana Saddi, a cultura dentro do BBB não é diferente da existente aqui fora. O que vemos ali é, portanto, um reflexo do "espírito cultural do nosso tempo". A superioridade moral, a lacração, a dificuldade do diálogo e o cancelamento são instrumentos-chave da comunicação contemporânea.
"Karol entrou [no BBB] com um bastião da liberdade, como se fosse trazer a justiça para tudo e todos, mas saiu desse jeito que estamos vendo", diz Saddi. "E até mesmo isso [a mudança de comportamento do público] tem muito a ver com a lógica cultural do nosso tempo."
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