Redação
“Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios – que permitem decifrá-la. A hipótese de que pormenores, aparentemente negligenciados, possam revelar fenômenos profundos, de notável alcance, é o que o historiador Carlo Ginzburg chama de ‘ponto essencial do paradigma indiciário’, que ele mesmo reconhece ter penetrado e modelado, profundamente, as ciências humanas.
Pode-se assim reconhecer e compreender a marca, a autenticidade e a engrenagem de uma instituição por meio do comportamento cotidiano de seus homens. A vida dos indivíduos nos oferece o mesmo material para a compreensão de seu tempo e de seu espaço. Os romancistas foram os primeiros a compreendê-lo, quando buscavam capturar os tipos e os comportamentos exemplares, como Cervantes em suas novelas.
A trajetória do coronel Romeu Antônio Ferreira no Exército Brasileiro é uma dessas histórias negligenciadas, que podem revelar fenômenos profundos que ajudariam a compreender os papéis desempenhados pela Força Terrestre nos últimos 50 anos. Nascido em 1940, em uma família meio árabe e meio italiana, Romeu foi um dos mais importantes oficiais da inteligência militar no País. Morreu no último dia 14 de agosto.
Não lhe prestaram homenagens bem como não sofreu o escracho de seus desafetos. Gostava de repetir que um pouco de história não faz mal a ninguém. E começava a contar que foi a partir de 1965 que oficiais das Forças Armadas passaram a ser enviados ao Panamá para cursar a Escola das Américas, em Fort Gullick.
Era lá, segundo contou em uma de suas últimas palestras, no Gabinete de Segurança Institucional (GSI) , do Rio, em 14 de setembro de 2023, que os Estados Unidos ‘promoviam cursos de inteligência e de segurança’.
Romeu dizia que foi aproveitando os conhecimentos trazidos do Panamá que começou a funcionar no Centro de Estudos de Pessoal (CEP), do Exército, em 1966, um curso de informações, categoria B. Destinava-se a capacitar oficiais das Forças Armadas e policiais. No ano seguinte, começaram os cursos Categoria C, para subtenentes e sargentos.
‘Durante 6 anos, de 1966 a 1971, o CEP realizou 16 cursos de Informações, formando quase 300 alunos para a atividade’, contou.
Lia jornais e guardava documentos em casa para contar sua história, o que fazia sempre consultando os textos de suas palestras. Lembrou que nos anos 1970, homens de operações dos centros de informações militares – CIE (Exército), Cenimar (Marinha) e CISA (Aeronáutica) – eram convidados para dar aulas no CEP e na EsNI.
‘Convidávamos o pessoal que estava na luta armada para ensinar. O Pablo ministrou aula lá, o Doutor Pablo (o coronel Paulo Manhães, integrante do CIE,, que atuou em operações que dizimaram grupos como a Vanguarda Popular Revolucionária, e do desaparecimento do corpo do ex-deputado Rubens Paiva).’
A repressão na época estava centralizada nos Destacamentos de Operações de Informações, de cada Exército. Para Romeu, a criação dos DOIs embutia um problema citado em sua palestra: a concentração em uma mesma organização das atividades de informações e de operações.
‘Num regime autoritário, por exemplo, a KGB, ela prendia, ela era informações, inteligência e prendia. A Gestapo ela prendia, buscava os dados e prendia. É muito poder no meu entender. O que eu chamo de política de dois braços? Um braço de coleta de dados e outro braço dá porrada. Inteligência em um braço e operações em outro braço. Na minha opinião, em um estado democrático de direito, tem de separar essas duas funções, inteligência e segurança.’
Em agosto de 1975, foi mandado ao 1º Exército, o atual Comando Militar do Leste (CML). Quem comandava ali era o general Reynaldo Mello de Almeida, amigo do presidente Ernesto Geisel. Ele tinha como chefe da 2ª Seção do Estado-Maior (Informações), o coronel Sérgio Mário Pasquale. Após um breve estágio, Pasquale chamou Romeu em outubro e disse:
‘Olha, você vai se apresentar amanhã no DOI, mas a missão que vou lhe passar é a seguinte: A luta armada está acabando, daqui a pouco nós não vamos mais prender, a missão de prender vai terminar e você está indo lá com a missão de reformular gradativamente o DOI do 1.º Exército para um órgão exclusivamente de informações. Não vai chegar lá e mudar, vai devagar’.
E assim foi.
‘Muitos anos mais tarde eu fui me aperceber que eu nada mais fui do que um instrumento da política do Geisel de distensão lenta, gradual e segura. E uma das tarefas era acabar com esse componente de segurança do DOI.’ Romeu ainda participaria da operação que cooptou Manoel Jover Telles, o dirigente do PCdoB que levou os militares até a reunião do comitê central do partido, então clandestino, na Lapa, na zona oeste de São Paulo.
A parte final da operação, a cargo dos militares de São Paulo, terminou com a chacina dos comunistas Pedro Pomar, Ângelo Arroyo e de João Baptista Drummond, em 16 de dezembro de 1976.
Romeu já era major e subcomandante do DOI do Rio quando, em 1980, um grupo de subordinados o procurou. Apresentaram-lhe uma proposta: explodir bombas no show do dia do trabalhador, no Riocentro.
‘E era na caixa de força. O objetivo era apagar a luz e acabar com o show. Eu proibi. Não era para ser feito e não foi feito.’ Em janeiro de 1981, Romeu deixou o DOI para cursar a Escola de Comando e Estado-Maior do Exército. Com ele fora do destacamento, o caminho ficou livre para a explosão de 30 de abril de 1981.
Eram 21h20. A primeira bomba explodiu antes da hora no estacionamento. Ela eviscerou o sargento Guilherme Pereira do Rosário, do DOI, que a carregava no colo, sentado ao lado do chefe, o capitão Wilson Dias Machado, o Doutor Marcos, que dirigia um Puma. Trinta minutos depois, outra bomba explodiu na casa de força. O atentado marcaria o fim das ações terroristas dos militares contrários à abertura política. ‘Aquilo foi coisa do SNI (Serviço Nacional de Informações), com a participação de dois ex-subordinados meus.’
Romeu não voltou mais ao DOI. Mas aguardou os papeis, como o primeiro interrogatório de Jover Telles. Ao concluir a Escola de Estado-Maior, foi para o Centro de Informações do Exército. Foi ali que escreveu a Apreciação s/nº de 27 de março de 1984, que recebeu a assinatura de 13 colegas da Seção 102 (Informações) do CIE, onde o oficial trabalhava como analista. O militar sugeria aos superiores que fosse escrita uma história, um livro com a versão dos militares sobre o combate ao comunismo. Pensavam que os jovens oficiais e praças poderiam ser influenciados pelo que era divulgado pela imprensa.
‘Sabemos que há muita coisa que não pode ser contada. Sabemos, entretanto, que há muita coisa que pode e deve ser contada. Temos os dados e os fatos. Falta-nos a vontade e a decisão.’ Foi só no ano seguinte que o documento foi parar nas mãos do general Tamoyo Pereira das Neves, então chefe do centro, que o levou ao ministro do Ex´drcito, Leônidas Pires Gonçalves.
Nascia o Projeto Orvil, do qual Romeu foi um dos dois redatores principais. O coronel arrumou um fim que dava um sentido a todos os seus papéis…”
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