Folhapress
O romancista Abdulrazak Gurnah venceu o prêmio Nobel de Literatura deste ano, o maior reconhecimento mundial a um escritor vivo. A Academia Sueca fez na manhã desta quinta-feira o anúncio que pega todas as bolsas de aposta de surpresa. Nenhum dos livros do autor, escritos em inglês com traços de suaíli, árabe e hindi, foi traduzido no Brasil.
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Nascido na ilha de Zanzibar e radicado no Reino Unido, Gurnah se tornou rapidamente um expoente da literatura pós-colonial, com os olhos voltados à África Oriental. É o primeiro autor da Tanzânia a ganhar o prêmio, e o segundo autor negro africano depois de Wole Soyinka, da Nigéria. O comitê do Nobel justificou a escolha do escritor de 73 anos "por sua rigorosa e compassiva investigação sobre os efeitos do colonialismo e os destinos dos refugiados na lacuna entre culturas e continentes".
"O mais interessante na obra de Gurnah é a dimensão da história privada, partindo da vivência das pessoas para entender as transformações de seu país", diz a professora Elena Brugioni, do Departamento de Teoria Literária da Unicamp, que estuda literaturas africanas. "Mais que a migração, o fio condutor dele é a ideia de movimento, de itinerância."
O escritor se mudou para o Reino Unido aos 18 anos, depois que um conflito armado estourou em Zanzibar em meio à perseguição estatal à minoria árabe a que ele pertence. Boa parte de seus livros tematizam uma história parecida à do autor, retratando pessoas que migram da Tanzânia para outros lugares. É o caso algumas de suas principais obras, como "Memory of Departure", "Paradise" e "By the Sea".
"Sua saída precoce do país explica o papel central do exílio em todos os seus trabalhos, mas também sua falta de nostalgia pela África pré-colonial", acrescentou o porta-voz. "Em Gurnah, você encontrará histórias marcadas por destinos individuais que não se conformam à narrativa colonial da história."
Brugioni afirma que a literatura de Gurnah foge das dicotomias simplistas, oferecendo leituras inesperadas da história. "Existem possibilidades de diálogo que vão além da visão da história a partir de um oprimido e um opressor, de alguém bom e mau." A literatura produzida na costa leste da África, que faz margem com o oceano Índico, ainda é pouco conhecida e estudada no Brasil, segundo ela.
"E é um contexto que complexifica a presença europeia no continente, porque nessa costa os europeus foram obrigados a negociar com outras grandes potências mercantis como os árabes, indianos. Não eram hegemônicos em meio aos impérios em disputa."
Esse contexto mobiliza uma obra capaz de retratar uma realidade mais complexa do que a que estamos acostumados, desconstruindo expectativas. "A literatura tem essa grande vantagem de poder mostrar essas contradições para se refletir e pensar."
A crítica literária destaca que a ilha de Zanzibar, onde o Nobel nasceu, é caracterizada pelo encontro de diversas linguagens, religiões e culturas, que se refletem na literatura produzida por Gurnah.
O Nobel de Literatura vinha tendo anos turbulentos antes da vitória pouco ruidosa da poeta americana Louise Glück, no ano passado. Outra cria dos Estados Unidos, o músico Bob Dylan causou um terremoto nos círculos literários ao ser escolhido para o prêmio há cinco anos, quando o principal de sua obra são letras de canções.
No ano seguinte, o Nobel passou por sua maior crise, devido a acusações de estupro e corrupção no comitê que escolhe os vencedores, o que causou sete baixas na instituição. Em 2018, o prêmio não foi entregue -foi a primeira vez que isso aconteceu por um motivo diferente de uma guerra- e, em compensação, a instituição decidiu escolher duas pessoas em 2019.
Mas isso não acalmou ânimo nenhum, já que ao lado da polonesa Olga Tokarczuk, o Nobel escolheu o austríaco Peter Handke, sob quem recaíam acusações de racismo e de negar a existência do genocídio na Bósnia. Fundada há 232 anos pelo rei da Suécia com o objetivo inicial de proteger seu idioma, a Academia Sueca seleciona desde 1901 o vencedor do Nobel, que hoje ganha um prêmio de 10 milhões de coroas suecas, ou cerca de R$ 6 milhões.
Dos 118 escritores escolhidos até hoje, apenas 16 foram mulheres. Só três pessoas negras venceram além de Gurnah -O nigeriano Soyinka, a americana Toni Morrison e Derek Walcott, da ilha caribenha de Santa Lúcia.
O eurocentrismo e a anglofilia, que sempre marcaram o Nobel de Literatura, ainda perduram -vale lembrar que a obra de Gurnah é escrita em inglês e irradiada do Reino Unido. Nove dos dez premiados da última década vieram da América do Norte ou da Europa -a exceção foi o chinês Mo Yan, em 2012.
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