A expansão pelo Brasil dos traficantes que se veem como 'soldados de Jesus'

Publicado em 02/01/2025, às 10h58
- Foto: Reprodução/BBC News

BBC News

Quando policiais fluminenses apreenderem tijolos de cocaína ou trouxinhas de maconha em operações contra o tráfico no Rio de Janeiro, podem encontrar uma nova marca estampando esses produtos ilegais: a Estrela de Davi.

O símbolo religioso não está ali em alusão à fé judaica, mas sim refletindo a crença evangélica de que o retorno de judeus a Israel resultará na segunda aparição de Jesus Cristo.

A facção conhecida por traficar drogas com essa nova roupagem é o Terceiro Comando Puro (TCP), um dos grupos criminosos mais poderosos do Rio — que controla o tráfico no Complexo de Israel e é notório tanto por desaparecimentos forçados quanto por sua forte crença evangélica.

A expressão mais visível da fé desse grupo criminoso é a Estrela de Davi azul neon instalada no alto de uma caixa d'água em Parada de Lucas, a primeira de cinco comunidades da Zona Norte da capital fluminense que foram progressivamente controladas pelo grupo, e que passaram a compor, a partir de 2016, o chamado Complexo de Israel.

O complexo é formado pelas comunidades Parada de Lucas, Cidade Alta, Pica-pau, Cinco Bocas e Vigário Geral.

O território foi tomado depois que um líder do TCP teve o que acreditou ser uma revelação divina, de acordo com a teóloga e pastora Vivian Costa, autora do livro Traficantes Evangélicos – Quem são e a quem servem os novos bandidos de Deus (2023).

Segundo Costa, os traficantes no local se veem como "soldados de Jesus" e se autodenominam Tropa de Aarão, referência ao mais velho irmão de Moisés.

Quem chega de trem a Parada de Lucas vê a bandeira israelense logo na plataforma da estação, na placa que saúda: "Seja bem-vindo ao Complexo de Israel."

Esse território virou sinônimo do avanço da fé evangélica entre criminosos e das restrições que impõem a fiéis de outras religiões, sobretudo as de matriz africana.

"Tanto as manifestações no espaço público como no espaço privado foram proibidas de existir nesses territórios, com muitas casas de umbanda e candomblé destruídas e queimadas", afirma Costa.

Nesses locais, a facção deixa sua assinatura e marca de domínio: "Jesus é dono do lugar".

Entretanto, de acordo com antropóloga Ana Paula Miranda, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), esse modus operandi tem se espalhado pelo Brasil, com ataques a terreiros de umbanda e candomblé replicados por traficantes em favelas de outras metrópoles, como Fortaleza e Salvador — e não apenas em territórios do TCP.

"Esse não é um problema apenas do Rio. Virou um problema das grandes cidades", afirma Miranda, que coordena o Ginga-UFF, grupo de pesquisa dedicado a conflitos de natureza étnica, racial e religiosa.

"Em Fortaleza, por exemplo, vimos a mesma estratégia em favelas do Comando Vermelho [CV]. Eles [traficantes] entram nas áreas, quebram objetos, picham paredes e assinam 'CV abençoado."

Miranda fala em "traficrentes" para descrever o fenômeno. Há quem se refira a narcopentecostais ou a traficantes evangélicos.

São denominações que despertam controvérsias, não só pela própria natureza dos termos.

Também pela incompatibilidade que muitos enxergam entre seguir esta fé e levar uma vida no crime.

O que para alguns pesquisadores é uma apropriação estratégica pelos traficantes em busca de legitimação e poder, é, para outros, um fenômeno natural em um país cada vez mais evangélico.

 

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