Folhapress
A Febraban começou a veicular em junho um comercial feito todo com inteligência artificial, do roteiro ao áudio. Uma inserção de 30 segundos como essa em geral envolve o trabalho de oito pessoas, mas foi feita com apenas duas e o auxílio de quatro plataformas de IA. Recentemente, a Volkswagen usou também a tecnologia para recriar a imagem e a voz de Elis Regina, morta há 41 anos, em um comercial.
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Essas tecnologias são, em geral, de amplo acesso e custam assinaturas módicas para produtoras publicitárias. A versão paga do ChatGPT custa US$ 20 (R$ 97,89) mensais e a assinatura do Midjourney varia entre US$ 10 (R$ 48,94) e US$ 60 (R$ 293,66). Isso sem dizer que as plataformas entregam textos e imagens em segundos.
A agência de empregos norte-americana Challenger, Gray & Christmas calculou que a inteligência artificial contribuiu para a eliminação de 3.900 postos de trabalho nos EUA só no mês de maio. No mês, os Estados Unidos contabilizaram 80 mil demissões.
As tarefas administrativas e legais serão as mais afetadas -mais de 40% serão automatizadas- e trabalhos em construção e manutenção são os menos vulneráveis a IA, segundo estudo dos economistas do banco norte-americano Goldman Sachs Joseph Briggs e Devesh Kodnani. Eles estimam que a IA pode acabar com 300 milhões de empregos nos próximos 10 anos.
Grupos de classe preocupados com a deterioração de seus postos de trabalhos já se mobilizam. É o caso do WGA (sindicato de roteiristas do oeste da América, em tradução livre), que está em greve desde 3 de maio.
A entidade reivindica que o uso de IA seja regulado na produção de séries e filmes. Os autores pedem que a tecnologia não seja usada para escrita de material literário nem como fonte de informação. Além disso, que roteiros de filmes e séries não sejam usados para treinar modelos de linguagem natural, como ChatGPT e similares.
A diretora do grupo de tecnologia da Abra (Associação Brasileira de Autores Roteiristas), Marta Nehring, afirma que as reivindicações do WGA vão além de salários e concernem à liberdade de criação. "Caso vire tudo mercado e quem entrega mais, vamos caminhar para produções cada vez mais genéricas."
Outra preocupação da Abra, alinhada com a WGA, é a proteção dos direitos do autor. Para a entidade, a IA deve ser tratada como uma ferramenta ao dispor das escolhas criativas do roteirista. "Tudo isso deve ser creditado corretamente", diz o vice-presidente da Abra, André Mielnik.
"Se aceitarmos produções que não creditem às fontes, peçam autorização para reproduzir e paguem os royalties, vamos ficar sem nada. O nome disso é plágio, que é roubo", diz Nehring.
Especialistas afirmam que a introdução de IA nas cadeias produtivas é incontornável. Um deles foi o pesquisador de Oxford, Callum Cant, que coordena o projeto Fair Work for AI (trabalho descente na inteligência artificial).
Para ele, é necessário haver condições mínimas para evitar que o trabalho seja tratado puramente como mercadoria. Em grande parte do mundo, os trabalhadores não têm direito a receber explicações sobre o objetivo de seu trabalho ou a cadeia produtiva da qual participam. Também ficam à mercê da escolha dos patrões de quais tecnologias serão adotadas na rotina de trabalho.
Cant cita os países escandinavos como exemplo, em que funcionários decidem quais inovações fazem sentido no ambiente de trabalho desde o período pós-guerra, quando florescia a automação na indústria.
O pesquisador diz, contudo, que é muito cedo para avaliar qual será o efeito da IA em termos de horas de trabalho e remuneração no conjunto dos empregos. "Tudo deve variar, a depender da área de atuação do negócio e de seu contexto nacional."
Na Índia, o CEO da startup Dukaan, Suumit Shah, afirmou que demitiu 90% de sua equipe de atendimento, após adotar um chatbot. Ele diz que o tempo da primeira resposta caiu de um minuto e 44 segundos para zero e reduziu os custos em 85%.
Nas redes sociais, Shah foi questionado sobre métricas de experiência do consumidor, sem menção em seu post. Também recebe críticas por "insensibilidade."
A implementação da inteligência artificial no mercado de trabalho ainda é incipiente, de acordo com a analista de inovação tecnológica Nicole Sarvasi, da startup FinTalk, que vende soluções de atendimento.
Na hora de atender um cliente, por exemplo, um chatbot não pode alucinar e fazer ofertas incompatíveis com a empresa que representa ou ofender um cliente. Empresas como a FinTalk restringem o comportamento das IAs com treinamento de reforço e reduzindo as possibilidades do interlocutor.
O próprio chatbot elogiado por Bill Gates, Pi, da InflexionAI, afirma que inteligências artificias geradoras estão na infância e que as expectativas devem ser ajustadas.
Por outro lado, o fundo de investimento New Edge Wealth estima que as novas tecnologias de inteligência artificial vão abrir um mercado global avaliado em US$ 1,3 trilhão no próximo ano. Inovação, no geral, gera postos novos.
Entre os atuais trabalhadores, 60% estão em profissões que não existiam antes dos processos de automação, diz relatório do Goldman Sachs. 85% dos empregos criados nos últimos 80 anos estiveram em postos inovadores.
O professor da USP Marcelo Finger, também diretor do C4AI (Centro para Inteligência Artificial, em tradução livre) afirma que adicionar anotações de qualidade às informações brutas será crucial para desenvolver modelos computacionais mais precisos.
Esse trabalho pode ser feito no atacado e no varejo. Quando é necessário um tratamento mais fino, profissionais especializados fazem análises criteriosas. Nas situações em que quantidade importa mais, plataformas de freelancers distribuem milhões de trabalhos temporários, sobretudo em países do sul global.
O maior desses sites, chamado Clickworker, reúne um exército de mais de 4,5 milhões de rotuladores de dados. O site SoyFreelancer entrega serviços diversos, incluindo relacionados a treino de IA, e tem 23 milhões de inscritos.
O Brasil já tem, por exemplo, 54 plataformas que oferecem serviços para anotar dados usados no treinamento de inteligência artificia, segundo estudo da Universidade Estadual de Maringá (UEM), liderado pelo professor Matheus Viana Braz. Segundo o docente, o problema é a atual desproteção dos trabalhadores atuantes na área.
Garantir que esses trabalhos resistam ao ímpeto da tecnologia é uma das preocupações do projeto Fair Work for AI, de Callum Cant. O projeto também recomenda que os funcionários recebam informações claras sobre cada tarefa.
O professor Julian Posadas, da Universidade de Yale, diz que o trabalho decente na rotulagem de dados é fundamental para evitar vieses e preconceitos nos modelos de inteligência artificial. "Trabalhadores plataformizados que entrevistamos não receberam instruções adequadas, o que pode levar a muitos erros no resultado final."
Posadas avalia que as grandes empresas agora terão de incrementar a qualidade dos dados existentes, já que os atuais modelos já trabalham com quase toda a informação disponível. "Ainda é cedo para garantir que isso vai garantir melhores condições aos trabalhadores."
A presidente da Intel no Brasil, Claudia Muchaluat, afirma que a empresa vai focar investimentos em inteligência no país e no resto do mundo, mas que não oferece oportunidades na área neste momento. A declaração à reportagem foi dada em evento de treinamento em IA da multinacional com professores do Centro Paula Souza, que administra as Etecs e Fatecs no estado de São Paulo.
O programa Youth for AI, da Intel, tem a ambição de treinar 30 milhões de jovens ao redor do mundo, milhares deles no Brasil. O treinamento, entretanto, ainda atende alunos da área técnica no setor de tecnologia.
No longo prazo, a ideia é que 60% dos alunos beneficiados sejam estudantes de informática e áreas de tecnologia e 30% de áreas diversas, segundo Emílio Loures, diretor de assuntos corporativos da Intel do Brasil. "Não existe economia de dados, sem IA. Se não soubermos programar, o que a gente vai produzir aqui, vai ser explorado fora pelos mesmos players de sempre."
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