Surfe espiritual une ioga ao mar para despertar poder feminino

Publicado em 01/02/2020, às 18h32
Adriano Vizoni - Folhapress
Adriano Vizoni - Folhapress

Por Folhapress

Olhos bem fechados, nove mulheres caminham em direção ao mar pela areia onde há pouco faziam uma aula de ioga. Água pelas canelas, elas avançam sempre de mãos dadas e se aproximam da arrebentação.

Não é preciso enxergar para pressentir a primeira onda.

Uma se desgarra. Agora, elas são oito. Água pela cintura, continuam mar adentro. De repente, param, entreolham-se. Juntas, elas se entregam, vencem o receio, as ondas quebrando no peito, os olhares curiosos. 

 hora de fazer uma saudação em grupo.

Estão prontas para correr de volta à praia, pegar suas pranchas e cair no mar. 

O sol vai alto numa manhã de quarta-feira de janeiro, na praia da Baleia, litoral norte de São Paulo, quando as mulheres, entre 16 e 43 anos, vestindo suas lycras e com os leashes [corda que liga à prancha] presos aos tornozelos, começam a se lançar às ondas.

Elas, que saíram de casa com o dia ainda nascendo, pegaram a estrada por diferentes motivos. Algumas para meditar, se aceitar, vencer seus medos ou só para ficar de pé em uma prancha. Outras, pelo pacote completo. 

No final, o objetivo é o mesmo: despertar a consciência de que elas, que não são atletas e não têm experiência no mar, entre muitas outras coisas também podem surfar. 

Até droparem alguma onda de verdade pode levar um tempo, mas o caminho até lá -e a transformação quando se chega- é o que conta.

"Surfar é como a vida, cara. Você vai se matar de remar e não vai ter garantia que vai pegar a onda. Se pegar, vai ter que lutar para ficar em pé. Nunca depende só de você", diz a professora de alimentação consciente e vegana Mariana Serrano, 37, enquanto, da areia, acompanha as amigas no mar.

Há cerca de um ano, essa experiência na Baleia é totalmente feminina. Idealizada pela empresária Dalila Foti, 36, foi batizada de Spirtual Surf e reúne em viagens ao litoral paulista surfe, ioga e sessões de thetahealing -uma técnica de meditação e autoconhecimento que ajuda a destravar os participantes a partir da busca por verdades cristalizadas no subconsciente, diz Dalila. 

"Não aceitamos homens porque a ideia é que elas interajam, se soltem e façam conexões. Se tivesse um marido, um namorado junto, poderia atrapalhar esse processo." 

Mesmo para ela, que começou a surfar cedo, a ideia de levar as meninas para a água e destravar medos e inibições também foi terapêutico. Ainda adolescente, uma experiência ruim no mar a manteve longe das ondas até a idade adulta. Um dia, resolveu que já era hora de vencer o trauma, chamou um amigo para ajudá-la e voltou ao surfe. 

Daquele ponto até transformar o sonho de viver sobre as ondas em uma empresa foi um pulo. Inspirada em acampamentos de surfe em que a ioga está presente, e em sua própria experiência, Dalila uniu o útil ao agradável. Criou as viagens de três dias (de sexta a domingo) ao litoral norte em que, além de aulas de surfe, oferece estadia -ela tem uma casa na Baleia-, alimentação completa, sessões de ioga e thetahealing pós-mar. 

Para isso, cada surfista desembolsa R$ 1.280. O requisito mínimo é saber nadar.

Experiências semelhantes podem ser encontradas no Brasil e no exterior. Algumas delas são mistas e, além da ioga, unem ao surfe o kitsurfe e o jiu-jítsu. 

As "trips" de Dalila deram tão certo que um grupo de frequentadoras assíduas se formou. Letícia Moreira, 29, executiva comercial de uma multinacional é uma delas. Mais do que vencer as ondas, colheu resultados inesperados.

"O surfe foi o esporte que mais me ajudou com a ansiedade, comecei a ter paciência e resiliência. No momento de desespero é quando mais preciso ter calma, respirar e me concentrar no que vou fazer. Parece simples, mas no dia dia, ainda mais para a área comercial, é uma arte ter paciência e pensar antes de agir", diz. 

As histórias que se equilibram nas pranchas de Dalila vão além. Mulheres que sofreram abuso sexual, traições, relacionamentos tóxicos e problemas de autoestima encontraram no surfe um esporte que oferece mais do que condicionamento físico. 

Naquela dia de janeiro, a fisioterapeuta Renata Maria Barbosa, 43, resolve vencer o medo e subir numa prancha pela primeira vez. 

Ao seu lado, um professor de surfe que auxilia Dalila entra no mar, segura sua prancha, ajuda-a a vencer a arrebentação. Quando a primeira onda vem, Renata trata de remar. A fisioterapeuta tenta se levantar, mas não há mais tempo, é engolida pela água. 

A cena se repete por cerca de meia hora, até ela desistir. Cabisbaixa, está quase na praia quando encontra Dalila. "Não deu, fiquei nervosa e não consegui", diz Renata. Antes que pudesse pisar na areia é convencida a tentar de novo. Novas quedas se sucedem até que, finalmente, ela consegue ensaiar um equilíbrio. Seu dia de surfe está ganho. 

"Todas estão lá com o mesmo objetivo: surfar, dando força e torcendo uma pra outra, vibrando quando uma fica de pé na prancha, nem se for por alguns segundos. Foi isso que me fez vencer o medo", diz.

Algumas meninas penam para se equilibrar, outras já estão dropando, mas ainda têm o que aprender, como não cortar a onda de quem estiver em uma posição melhor e respeitar o mar e fugir das correntes de retorno que podem puxá-las para longe.

Enquanto isso, Mariana tirou a manhã de sol forte para a ioga e para observar o mar. "O surfe é o esporte mais espiritual com que já tive contato. Ele me ensina a entender a vida, a ter paciência quando preciso esperar a onda certa", diz. 

Sentada sob o guarda-sol, ela reflete sobre a prática. "O surfe me ensina a ser humilde quando a onda vem pro outro e não pra mim, me ensina, passando a arrebentação, que meus problemas são do tamanho do grão de areia, e meu único desafio é estar no aqui e agora e passar as ondas pra chegar no outside [onde elas quebram]", afirma.

É hora de ir. As nove mulheres deixam a praia mais conscientes do que são capazes.

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