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Pausa para a leitura: Todo fim é um começo

POR FERNANDA VAN DER LAAN* | 08/10/23 - 09h00
Foto: Fernanda van der Laan

Eu vou começar pelo fim. O fim é o concreto, é o absoluto e é, por mais incoerente que pareça, o ponto onde deveríamos começar.

Plagiando Nietzsche, fui humana, demasiadamente humana. Expus minhas vulnerabilidades aos céus. Não sei se esse seria um conselho prudente, admitir-se vulnerável exige coragem. Afinal, a exposição do que é essencialmente humano possibilita conexões incríveis. Consegui ter relações profundas com pessoas absurdamente diferentes de mim e completamente alheias à minha realidade. Assim como criei armas contra mim mesma nesse looping de sinceridade, espontaneidade e impulsividade. 

Meus interesses sempre foram difusos. Sempre faltou a tríade que é a trend do momento: foco, força e fé. Busquei Deus em quase todos os lugares. Não sei se achei.

Estudei o budismo, a cabala, tomei passes espíritas, jogaram cartas e búzios na minha cara e eu não descobri o Sentido. Nunca deixei de rezar o Pai Nosso antes de dormir.

Sempre tive dificuldade para pegar no sono e sempre tive dificuldade para acordar. A noite sempre foi a minha hora preferida. A cidade vazia. As luzes. As luzes de Natal.

Sempre esperei pelo Natal e o Advento parecia a confluência perfeita: noite e Natal com um quê de Deus. E sempre ganhei de presente uma melancolia sem fim no dia seguinte. Descobri que vésperas são torturantes. Minha noção espacial era equivocada. Eu vibrei com o acesso ao GPS. Parecia que os meus problemas seriam resolvidos. Mas me perdi. E as pessoas que perdi no caminho eram as desnecessárias.

Não entendi como funcionavam os diálogos monótonos dos ordinários e nem dos medíocres. A ordem e a média. Nunca estive nesse espectro. Eu vi adultos infantilizados e crianças vulgarizadas. Eu avistei grandes Lagos que pareciam mares e mares que pareciam lagos. Descobri que as bordas nunca são infinitas. Sempre transbordei. Não me afinei com as exatas e busquei alento na literatura. Li Jorge Luís Borges e senti vergonha de tudo que escrevi. A erudição sempre me pareceu inalcançável. As nuances frutadas dos vinhos só me trouxeram enxaqueca. Viajei para lugares incríveis. Nunca saí de mim. Enterrei o meu pai e morri. Eu ouvi o choro de um bebê numa sala de parto. Depois ouvi o choro de dois bebês. E renasci. Não sei se tive vocação, mas criei filhos incríveis. As coisas mais potentes que deveria ter falado, calei. 

A minha maior arma sempre foi minha língua. Consegui domá-la. E o que não falei virou inspiração e cartas na manga. Sempre tive uma bala de prata. De ouro. De platina. De plutônio. Deixei-a guardada.

Fiz o bem. E agora vou me abster dos passados e pretéritos da gramática. O bem se faz em silêncio. A caridade genuína é discreta. Não vou discorrer sobre o que fiz - se o fiz. Dirigi rápido demais. Não me atrasei. Mas nem sempre estive onde fui vista. Aliás, na maioria das vezes, estava longe.

Eu vi o Monte Fuji pela janela da minha casa. E vivi num universo paralelo, onde as horas, a distância, os terremotos e as bombas atômicas não podiam me destruir. E eu me senti, estranhamente, em casa no Japão. Eu me senti patriota em frente ao congresso nacional em Brasília. Fiquei emocionada quando vi a catedral de São Basílio.

E nunca me acostumei com a Holanda. De onde eu vim e para onde eu sempre quis voltar. E onde aportei, meu porto, Porto Alegre. As ruas que passei quando criança são meus quebrantos. Labirintos das minhas memórias. Meu cárcere foram minhas raízes. 

Meu nome foi meu troféu. Aquilo que meu pai me deu e ninguém tirou. E nem poderia. Minha sina. Cheguei a ficar confusa em relação aos meus hábitos e gostos. Achei que reproduzia ou me inspirava. Subestimei todos os meus ancestrais. Subestimei a força do meu DNA. Era sempre isso que determinava minhas ações maiores. Meu mix genético não deu match com o establishment. Transgredi.

Honrei meu nome. Desonrei. Julguei e fui julgada. Minha pena, paguei. A dos outros, perpetuou. O que quis, fiz. Numa determinação irresponsável e desenfreada que me assusta quando vejo em meus descendentes. Não sei se é razoável ser assim. 

Eu me distraí com as frivolidades do mundo. Achei que deveria cuidar das aparências.

Enfeitei o que não deveria. Descobri que deveria ter gastado menos tempo com a mesa posta. Que isso não importa. Que nada disso importa. Escolhi as pessoas ao invés de escolher os talheres. E foi libertador. 

Aliás, a verdade é libertadora. E eu estive sempre com ela e esse é o segredo da paz que pude sentir.

Comecei a escrever.

O tempo do verbo mudou.

Nasci.

► *FERNANDA VAN DER LAAN É PSICÓLOGA / @fernandissima