O corpo de algumas pessoas é capaz de derrotar o Sars-CoV-2, vírus causador da Covid-19, sem que nenhum sintoma da doença se manifeste, e a explicação pode estar no DNA delas, mostra um novo estudo. Nesses indivíduos, a variante de um gene ligado ao sistema de defesa do organismo permite que o invasor viral seja reconhecido e combatido com eficiência exemplar.
Os dados estão em artigo que acaba de sair na revista científica Nature. O trabalho tem como primeiro autor o brasileiro Danillo Augusto, professor da Universidade da Carolina do Norte em Charlotte (EUA) e também do Programa de Pós-Graduação em Genética da UFPR (Universidade Federal do Paraná).
"Logo no início da pandemia, chamou a atenção o fato de que muitas pessoas não desenvolviam sintomas da Covid-19, e nós imaginamos que poderia haver algum fator genético de proteção [por trás disso]", explicou Augusto à Folha. "No entanto, como pessoas sem sintomas normalmente não procuram atendimento médico, sabíamos que seria muito difícil coletar amostras delas."
Para contornar essa dificuldade, ele e seus colegas se valeram de um banco de dados já existente, o registro nacional de doadores voluntários de medula óssea dos EUA. A vantagem é que o diretório já incluía informações sobre o DNA dos voluntários, uma vez que isso influi na compatibilidade das doações.
"Enviamos milhares de emails convidando essas pessoas a baixarem um aplicativo de celular. Todos os dias, elas relatavam se tinham tido algum sintoma e também compartilhavam resultados de testes de detecção do vírus", conta o pesquisador.
Entre os dados do registro de doadores estavam informações sobre um grupo de genes designados coletivamente pela sigla HLA (de "antígenos leucocitários humanos", em inglês). Esses genes contêm a receita para a produção de moléculas cuja função poderia ser comparada à de um curso de defesa pessoal do organismo.
Quando, por exemplo, um vírus invade uma nova vítima, as moléculas HLA apresentam partículas virais às chamadas células T do sistema de defesa do organismo. Isso desencadeia um contra-ataque em múltiplas frentes, o qual, com alguma sorte, pode levar à derrota do invasor.
Análises anteriores já indicavam que a variação nos genes HLA poderia ser relevante para o curso da infecção pelo vírus da Covid-19. A equipe, então, cruzou os dados genéticos das pessoas que responderam aos seus contatos -cerca de 1.500 doadores- com os relatos delas sobre o diagnóstico da doença. Foi aí que ficou claro que um alelo (variante genética) designado pela sigla HLA-B*15:01, presente em mais ou menos 10% das pessoas de origem europeia na amostra, tinha uma associação com as infecções assintomáticas.
Para ser exato, quem carregava o alelo tinha uma probabilidade quase três vezes maior de não apresentar sintomas da doença. No caso dos indivíduos que carregavam duas cópias do alelo -uma herdada do pai e a outra, da mãe-, o efeito parece ser ainda mais claro: essas pessoas tinham probabilidade oito vezes maior de não ter sintomas.
Se o trabalho tivesse se restringido a esse tipo de análise, os dados poderiam não passar de uma associação estatística, que não necessariamente mostra que a presença da variante de DNA é a causa da infecção sem sintomas de Covid-19. Por isso, a equipe integrada pelo brasileiro conduziu uma série de outros testes. Entre eles, o mais importante foi a análise de culturas de células humanas obtidas muito antes da pandemia, ou seja, sem nenhuma chance de contato prévio com o Sars-CoV-2.
"Nós observamos que as células dos indivíduos que têm essa variante de DNA apresentavam memória imunológica contra uma partícula do vírus da Covid-19, mesmo sem ter tido contato com o vírus", explica Augusto. "Por isso, eles tinham uma resposta imunológica muito rápida e eficaz, eliminando o vírus antes que ele causasse os sintomas."
Ocorre que essa memória do sistema de defesa foi ativada por causa da semelhança entre determinadas moléculas do Sars-CoV-2 e as de outros coronavírus que circulam há muito mais tempo na população humana, causando boa parte do que chamamos de resfriados comuns. Essas moléculas são classificadas como "conservadas" evolutivamente, ou seja, são comuns a uma ampla gama de coronavírus diferentes que evoluíram a partir de um mesmo ancestral comum.
Entender melhor a interação entre a variante e as porções conservadas do genoma dos coronavírus pode inspirar, no futuro, vacinas mais eficazes contra todos os sintomas da Covid-19, embora as atuais já sejam muito úteis contra sintomas graves e risco de morte. A equipe também pretende verificar se o mecanismo de proteção está presente em populações de origem não europeia.