Análises feitas em esqueletos com cerca de 2.000 anos, achados no litoral de Santa Catarina, trouxeram à tona o mais antigo DNA das bactérias responsáveis por causar a sífilis e outras doenças semelhantes mundo afora.
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Os dados genéticos reforçam a ideia que esses micróbios já tinham uma história extremamente longa no continente americano antes de provocarem epidemias no Velho Mundo a partir do fim do século 15. Ao que tudo indica, portanto, eles foram levados das Américas para a Europa pela primeira vez depois das viagens pioneiras de exploradores como Cristóvão Colombo, que cruzou o Atlântico vindo da Espanha em 1492.
Publicado na edição desta semana da revista científica Nature, uma das mais importantes do mundo, o trabalho é uma parceria entre pesquisadores da USP e especialistas europeus. As pessoas contaminadas com as bactérias da subespécie Treponema pallidum endemicum foram sepultadas no sítio arqueológico Jabuticabeira II, na região de Laguna (SC).
Os enterros aconteceram num sambaqui, estrutura semelhante a um morro artificial construído com conchas e sedimentos que foi importante durante milênios em diversos pontos da costa brasileira. Ao que tudo indica, os sambaquis funcionavam como monumentos funerários (alguns contavam com centenas de sepultamentos) e marcadores de território para os grupos litorâneos. Neles é possível encontrar restos de refeições funerárias, feitas em honra do morto, além de estatuetas de animais marinhos e terrestres e outros artefatos de pedra.
Segundo um dos autores brasileiros do estudo, o médico José Filippini, o trabalho começou com sua tese de doutorado no Laboratório de Antropologia Biológica da USP, que foi concluída em 2012.
"Foi quando realizamos um estudo sistemático para diagnosticar treponematoses [as doenças causadas pelas bactérias do gênero Treponema] em mais de mil indivíduos de sítios arqueológicos, como os de sambaquis das costas do Sul e Sudeste do Brasil", contou ele. Dessa grande amostra, ele conta que foram identificados 22 casos suspeitos de treponematose.
É aí que começa o problema do ponto de vista da história profunda dessas doenças. Hoje, existem três moléstias diferentes causadas por versões ligeiramente diferentes da mesma espécie bacteriana. A sífilis propriamente dita -uma doença sexualmente transmissível que, antes da invenção dos antibióticos, podia ser letal, causar deformidades e destruir o sistema nervoso dos doentes- está associada à subespécie Treponema pallidum pallidum.
Mas há também a bouba, que causa lesões na pele, ossos e juntas e é causada pela T. p. pertenue, e o bejel, que costuma começar com lesões na boca e na pele e está ligada à T. p. endemicum.
Hoje, apenas a sífilis costuma ser transmitida por contato sexual, e apenas ela se espalhou pelo mundo todo. O bejel é endêmico de regiões secas e quentes, como o Oriente Médio, e a bouba ainda ocorre na África e na América do Sul. Lesões ósseas costumam ser um indicativo de que alguma forma dessas bactérias estava presente no passado.
"São alterações que chamamos de periostite, nas quais a superfície do osso apresenta fístulas (cloacas, perfurações), com o osso remodelado (mais espesso que o normal). E tudo isso em mais do que em apenas um osso", exemplifica Filippini.
"Estamos falando de indicações gerais de infecção treponemal. Mas muitas vezes é problemático separar a subespécie com base apenas nas lesões ósseas, porque todos os estudos com DNA antigo mostram que todas as subespécies de bactérias do tipo causavam manifestações muito similares entre si no passado", explica a coordenadora do estudo, Verena Schuenemann, da Universidade de Zurique, na Suíça. Portanto, só a análise de DNA é capaz de separar um tipo de infecção do outro.
Foi isso o que os pesquisadores conseguiram com a extração do material genético e seu sequenciamento (grosso modo, "soletramento") de quatro pessoas sepultadas no sambaqui Jabuticabeira II (duas delas identificadas como do sexo feminino via DNA, as outras duas com esqueletos compatíveis com o sexo masculino, mas sem dados genéticos correspondentes).
Por ser da subespécie T. p. endemicum, considera-se que as bactérias achadas nos esqueletos do sambaqui estão associadas ao bejel moderno. De fato, uma "árvore genealógica" dos genomas dos micróbios mostra que ela está na base da linhagem associada a essa doença.
"Não há dúvidas que, nas Américas, as linhagens das bactérias dessas doenças são antiquíssimas e podem ter sido trazidas até pelos primeiros grupos de seres humanos que chegaram ao nosso continente", resume a bioantropóloga Sabine Eggers, que trabalhou na USP e hoje é pesquisadora do Museu de História Natural de Viena.
Ainda resta saber, porém, porque elas não parecem ter causado grande destruição antes do primeiro contato dos europeus com os povos das Américas, quando a sífilis teve um avanço explosivo pela primeira vez. Uma possibilidade tem a ver com o fato de que os povos do Velho Mundo, por nunca terem tido contato com o micróbio, não tinham defesas naturais contra ele e por isso sofreram mais.
"Outra hipótese antiga é que essas doenças eram menos agressivas em regiões tropicais, em que se usava pouca roupa e a transmissão era pelo simples contato pele a pele. Com a chegada a um clima temperado, a bactéria se adaptou à transmissão pelo contato sexual e teria se tornado mais virulenta", diz Eggers.
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